Tribunal Internacional de Justiça aponta o dedo a Israel

 Tribunal Internacional de Justiça aponta o dedo a Israel

Palácio da Paz, sede do Tribunal Internacional de Justiça, em Haia, nos Países Baixos. (Créditos fotográficos: UN Photo/Andrea Brizzi – news.un.org)

A decisão do Tribunal Internacional de Justiça (TIJ), o principal órgão judicial da Organização das Nações Unidas (ONU), revelada a 26 de janeiro, não conclui que Israel cometeu genocídio, em Gaza, mas que não há bases para excluir esse facto.

David Simon, diretor do programa “Estudo do
Genocídio”, em Yale. (politicalscience.yale.edu)

O “Tribunal do Mundo”, com sede em Haia, nos Países Baixos, sustenta que há motivos de preocupação e adverte as autoridades israelitas a que mudem as suas práticas, o que deixa o primeiro-ministro israelita ainda mais isolado, como reconhece David Simon, diretor do programa “Estudo do Genocídio”, em Yale. “Se Israel desafiar o TIJ, a opinião pública – e em alguns casos, o direito –, estará a pressionar os governos para que reduzam o apoio a Israel. E, claro, dará mais impulso ao movimento de oposição a Netanyahu”, observa David Simon.

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Depois de, em novembro de 2023, o presidente sul-africano, Cyril Ramaphosa, ter anunciado que o seu país tinha pedido ao Tribunal Penal Internacional (TPI) que investigasse os abusos de Israel na sua ação militar na Faixa de Gaza, o executivo da África do Sul apresentou, a 29 de dezembro, ao TIJ o pedido urgente para avaliar a acusação contra o Estado israelita de crimes, incluindo de genocídio, na Faixa de Gaza.

Presidente da África do Sul, Cyril Ramaphosa.
(pt.wikipedia.org)

Dado o “dano contínuo, extremo e irreparável sofrido pelos Palestinianos em Gaza”, Pretória também pediu que o tribunal decretasse medidas de emergência, incluindo ordenar que Israel cesse, imediatamente, as operações militares, bem como todos os “atos genocidas” descritos no pedido.

No pedido de 84 páginas apresentado ao TIJ, Pretória enfatizou a obrigação de todos os Estados Partes – onde se incluem a África do Sul e Israel – da Convenção de 1948, de tomar “todas as medidas razoáveis ao seu alcance, para prevenir o genocídio”. Como tal, instou o tribunal a reconhecer que Israel violou esta obrigação.

Cyril Ramaphosa voltou a defender a causa, a 9 de janeiro, afirmando que “o povo da Palestina hoje está a ser bombardeado, os Palestinianos estão a ser mortos e há ‘apartheid’ em Israel”. “Tínhamos o dever de nos levantar e apoiar os Palestinianos”, salientou o também presidente do partido no poder, durante as celebrações do 112.º aniversário do Congresso Nacional Africano (ANC, no poder desde 1994), na capital da província de Mpumalanga.

O presidente da África do Sul, Cyril Ramaphosa, voltou a defender a causa, afirmando que “o povo da Palestina hoje está a ser bombardeado, os Palestinianos estão a ser mortos e há ‘apartheid’ em Israel”. (Créditos fotográficos: Ibraheem Abu Mustafa – Reuters – agenciabrasil.ebc.com.br)

O presidente sul-africano sustentou que a África do Sul “é um ponto de referência para o Mundo, em questões de direitos humanos”, e que tem o dever de denunciar os ataques contra Palestinianos na Faixa de Gaza. “Algumas pessoas dizem que é arriscado, somos um país pequeno, somos uma economia pequena, mas defendemos princípios”, declarou, citado pela imprensa sul-africana.

Os Estados Unidos da América (EUA) opuseram-se, qualificando a ação de “contraproducente e completamente desprovida de base factual”, mas a causa é apoiada por outros países. Porém, o executivo sul-africano tem sido historicamente forte apoiante da causa palestiniana e o ANC tem frequentemente associado a causa à sua luta contra o regime segregacionista do ‘apartheid’ (1948-1994), na África do Sul.

O primeiro-ministro israelita, Benjamin Netanyahu, acusa as
autoridades sul-africanas de espalharem “mentiras. (Créditos
fotográficos: Abir Sultan/Pool via AP, arquivo – thehill.com)

Por seu turno, ainda a 29 de dezembro, Israel condenou e rejeitou a alegação de genocídio formulada, que classificou de “repugnante”, tendo dois dias depois o primeiro-ministro, Benjamin Netanyahu, acusado as autoridades sul-africanas de espalharem “mentiras”.

Um coletivo de 15 juízes do TIJ começou, a 15 de janeiro, a avaliar o pedido apresentado pela África do Sul contra o Estado israelita, que acusa de genocídio na Faixa de Gaza, e que o líder sul-africano voltou a defender. A audiência que começou, nesse dia, com a África do Sul a apresentar os seus argumentos perante os juízes, diz respeito às medidas provisórias, e Israel, que participa no processo, apresentou a contestação e defesa no dia seguinte.

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A África do Sul não tinha de provar que estava em curso em Gaza um genocídio; tudo o que tinha de demonstrar é que o TIJ tem competência para avaliar o assunto, recorrendo a argumentos tão contundentes como o número de mortos e a deslocação forçada de Palestinianos, em Gaza.

O TIJ concluiu que, numa primeira análise, vários atos cometidos em Gaza podem estar abrangidos pela Convenção do Genocídio. A vitória para os Palestinianos não é total – pois, não houve indicação do cessar-fogo imediato –, mas este primeiro veredicto é desconfortável para Israel. Durante vários minutos, a juíza presidente, Joan Donoghue, referiu-se à linguagem inflamada usada por autoridades israelitas, que “comprova a intenção” do país de cometer genocídio. E citou Israel Katz, que, em outubro, quando era ministro das Infraestruturas israelitas, escreveu, na rede social X: “Vamos combater a organização terrorista Hamas e destruí-la. Toda a população civil de Gaza tem ordens para sair imediatamente. Nós venceremos. Eles não receberão uma gota de água ou fornecimento de gás até que saiam.”

A juíza presidente do coletivo no TIJ, Joan Donoghue. (noticias.uol.com.br)

Joan Donoghue mencionou ainda a utilização da expressão “animais humanos” pelo ministro da Defesa de Israel: Yoav Gallant anunciou um “cerco completo” a Gaza e disse que Israel estava a lutar contra “animais humanos”. Admitiu, por isso, que o povo palestiniano atende aos critérios necessários para ser considerado como grupo vulnerável, de acordo com os termos da convenção do genocídio. “Os palestinianos parecem constituir um grupo nacional, étnico, racial ou religioso distinto e, portanto, um grupo protegido, ao abrigo do artigo 2.º da Convenção sobre o Genocídio”, entendeu a presidente do coletivo no TIJ.

No final, uma conclusão indigesta para o governo israelita: Israel deve tomar todas as medidas ao seu alcance para impedir a prática de quaisquer atos de genocídio, prevenir e punir o incitamento direto e público à prática de genocídio, assim como tem de permitir, imediatamente, a prestação de serviços básicos e assistência humanitária, urgentemente necessários, em Gaza, impedir a destruição e garantir a preservação de provas relacionadas com as acusações da África do Sul.

A decisão no atinente às medidas provisórias significa que o TIJ acredita que é plausível que Israel estará a cometer genocídio, o que é importante, pois o tribunal não rejeitou o caso como estando fora da sua jurisdição, e, ao preparar o terreno para a audiência do mérito do caso, sustentou, claramente, que se aplica o crime de genocídio, mas não impôs o cessar-fogo imediato. Neste aspeto, a decisão dececiona.

A juíza presidente observou, a 26 de janeiro, que Gaza é uma região “extremamente vulnerável”, e que a situação “catastrófica” pode deteriorar-se antes de o tribunal emitir a decisão final sobre o caso – o que pode demorar anos. Não pediu o fim imediato das hostilidades, mas concluiu que uma ordem que provoque danos intencionais aos civis “pode constituir um crime”.

A Faixa de Gaza é um território “muito vulnerável com diferentes níveis de pobreza”. (sicnoticias.pt)

Tendo considerado os termos das medidas provisórias solicitadas por Pretória e as circunstâncias do caso, o tribunal considera que as medidas indicadas não precisam de ser idênticas às solicitadas e que, no respeitante à situação atual, Israel deve, de acordo com as suas obrigações ao abrigo da Convenção sobre o Genocídio, em relação aos Palestinianos em Gaza, tomar todas as medidas ao seu alcance, para impedir a prática de todos os atos no âmbito do artigo 2.º da Convenção.” Ou seja, Israel deve tomar medidas para evitar “infligir deliberadamente ao grupo [Palestinianos] condições de vida calculadas para provocar a sua destruição física, no seu todo ou em parte”.

A decisão não é o fim. Sinaliza o fim da impunidade pela violência contra os Palestinianos em Gaza e a vontade do tribunal de se pronunciar no decurso do genocídio, em vez de esperar para contar os mortos. Assim, ao ordenar a Israel que evite o genocídio em Gaza, o TIJ mudou o discurso internacional, transferindo o foco para Israel e para a sua responsabilidade de prevenir o genocídio. O tribunal considerou alguns elementos da petição suficientemente convincentes para justificar uma investigação mais aprofundada sobre as alegações de genocídio e o apelo a algumas das medidas preliminares que a petição pede.

Seria surpreendente se o tribunal considerasse todo o conteúdo da queixa convincente ou se apelasse à implementação de todas as medidas solicitadas. As medidas preliminares centram-se em ações que o Estado de Israel pode tomar, bem como em medidas que podem servir de alerta aos Estados que estão a ajudar Israel, bem como aos que possam estar a ajudar o Hamas. Também os terceiros interferentes indiretos podem correr o risco de violação do direito internacional.

TIJ conclui: Palestinianos devem ser protegidos de genocídio. (Créditos fotográficos: Piroschka van de Wouw/Reuters – dw.com)

O caso é diferente, quando se trata de demonstrar que houve práticas genocidas. Para o provar, será necessário investigar sobre a intenção de Israel em várias ações. No atinente a questões como o incitamento ou a omissão de processar indivíduos que possam ter agido num genocídio não será difícil provar. Mas, para concluir que toda a campanha em Gaza e elementos substanciais dela constituem genocídio, será necessário obter um grande ónus de prova no respeitante à cláusula ‘empreendida com a intenção de destruir’. Não obstante, existem amplas evidências de violações de cada artigo da Convenção sobre Genocídio. É, pois, de acreditar que Israel voltará ao TIJ e que os líderes que ordenaram o genocídio serão levados a julgamento.

No relatório de 1999, a Comissão das Nações Unidas para o Esclarecimento Histórico concluiu que o Exército guatemalteco tinha cometido atos genocidas. As acusações e condenações de alguns autores intelectuais do genocídio e dos que deram ordens para cometer 626 massacres de aldeias maias, desaparecimentos forçados e outros crimes contra a Humanidade, demoraram mais de uma década. As rodas da justiça são lentas.

Reagindo à decisão, Benjamin Netanyahu elogiou o TIJ por ter “rejeitado com justiça” o caso da África do Sul, apesar de ter imposto várias condições a Israel. Optou por se referir ao facto de o tribunal não ter ordenado a suspensão das hostilidades. Porém, comentou a acusação de genocídio, definindo-a como “não apenas falsa, mas ultrajante”. “Como qualquer país, Israel tem o direito inerente de se defender. A tentativa vil de negar a Israel este direito fundamental é uma discriminação flagrante contra o Estado judeu, e foi justamente rejeitada”, declarou.

A 27 de janeiro assinala-se, anualmente, o Dia Internacional em Memória das Vítimas do Holocausto. (eurocid.mne.gov.pt)

“Na véspera do Dia Internacional em Memória do Holocausto, prometo, novamente, como primeiro-ministro de Israel: nunca mais”, acrescentou, apontando, mais à frente, que a guerra foi declarada “contra os terroristas do Hamas, não contra os civis palestinianos”.

O primeiro-ministro assegurou que o país continuará a “facilitar a assistência humanitária” e a dar o seu melhor “para manter os civis fora de perigo, mesmo que o Hamas utilize os civis como escudos humanos”. São promessas vãs, por um lado, pois Israel pode ignorar a decisão do TIJ e continuar a operação genocida; por outro, visto que, devido a esta questão, Israel já tem relações estranhas com grande parte dos países, poderá não arriscar o incumprimento

Se houver verdadeira justiça, o Estado israelita ficará isolado. Sem o seu isolamento económico e político, continuará a desencadear horrível violência contra o povo palestiniano. E os Estados devem também ser avisados: o apoio à operação genocida israelita pode levar a serem acusados de cumplicidade no genocídio. A responsabilidade recai sobre todos os Estados para que permaneçam do lado da justiça e tomem medidas económicas e políticas que obriguem Israel a concordar com um cessar-fogo imediato e com a retirada completa de todas as terras palestinianas. Israel devia iniciar um processo político sustentável que satisfaça as aspirações do povo palestiniano em termos de liberdade e de direitos.

O presidente norte-americano, Joe Biden, foi firme no seu apoio ao primeiro-ministro de Israel, Benjamin Netanyahu. (Créditos fotográficos: Getty Images – bbc.com)

Israel ainda recebe apoio substancial dos EUA, da Europa e de vários outros países. Porém, se Israel desafiar o TIJ, a opinião pública e o direito pressionarão os governos para que reduzam o apoio a Israel. Espera-se que decisão do TIJ informe, e até inflame, o debate político, debate já controverso e que, provavelmente se tornará ainda mais polémico.

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Para o constitucionalista Vital Moreira, com quem se concorda, a decisão do TIJ, além de ter aceitado investigar o genocídio em Gaza, indicando vários indícios, e de ter ordenado a Israel importantes medidas cautelares – sobretudo em ordem à proteção de civis –, inclui um grande triunfo para a causa palestiniana, pois reconhece que “os Palestinianos parecem constituir um grupo nacional, étnico, racial ou religioso distinto e, portanto, um grupo protegido, ao abrigo do artigo 2.º da Convenção sobre o Genocídio”, atribuindo-lhes “identidade nacional própria”, o que consubstancia o direito ao próprio Estado, que Israel lhes nega. E constitui advertência contra Israel e contra os seus apoios políticos e militares, a começar pelos EUA, o Reino Unido e a União Europeia (UE), coniventes politicamente com “a sangueira que vitimiza centenas de palestinos inocentes”. O atual silêncio de Washington e de Bruxelas revela-se “comprometedor”.

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01/02/2024

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Louro Carvalho

É natural de Pendilhe, no concelho de Vila Nova de Paiva, e vive em Santa Maria da Feira. Estudou no Seminário de Resende, no Seminário Maior de Lamego e na Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa. Foi pároco, durante mais de 21 anos, em várias freguesias do concelho de Sernancelhe e foi professor de Português em diversas escolas, tendo terminado a carreira docente na Escola Secundária de Santa Maria da Feira.

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