Um mundo sem fronteiras

 Um mundo sem fronteiras

(Créditos fotográficos: Grant Durr – Unsplash)

No conturbado planeta em que vivemos, muitos anseiam por um mundo de paz e sem fronteiras, semelhante ao da famosa canção “Imagine”, de John Lennon, escrita no longínquo ano de 1971. Outros, pelo contrário, não em menor número, advogam um mundo de reforçadas fronteiras e de estrito controlo. Outros ainda, indecisos ou, quiçá, prudentes e realistas, optam por posições mais moderadas. Enquanto isto – e alheias a tudo o resto –, as tecnologias da informação e comunicação moldam a nossa sociedade de acordo com as conveniências de um número muito limitado de grandes empresas tecnológicas que, essas sim, ultrapassam ou definem fronteiras a seu bel-prazer.

Em 19 de julho de 2024, um pequeno erro de software provocou uma falha informática à escala global, que afetou empresas em todas as áreas, incluindo vendas a retalho, bancos, companhias aéreas, comunicação social e, até, governos de vários países. Apesar de a empresa  responsável pelo software defeituoso ter atuado de imediato, em muitos casos, as perturbações persistiram por várias horas ou dias, causando prejuízos estimados em mais de mil milhões de dólares. Tratou-se, é certo, de uma falha involuntária, mas o incidente demonstrou as enormes vulnerabilidades das modernas infraestruturas digitais, sobre as quais assenta o funcionamento de praticamente todos os países e da sociedade, em geral. O que aconteceria se a falha tivesse sido provocada intencionalmente e implicasse uma difícil resolução?

Este “pequeno” incidente mostrou, uma vez mais, o quão dependentes estão os sistemas e infraestruturas críticos de fatores que, praticamente, ninguém controla. Para usar a palavra da moda, será que, em face do ocorrido, não se deveria investir muitíssimo mais na resiliência dos sistemas informáticos, a chamada ciber-resiliência? O referido incidente mostrou, também, que os poderosos sistemas e infraestruturas informáticos são, também, extremamente frágeis, demonstrando que é fundamental e urgente encontrar formas de eliminar dependências e de mitigar riscos, sejam eles decorrentes de falhas involuntárias ou de ações intencionais.

(Créditos fotográficos: Amy Feingold – Unsplash)

Muitos sistemas críticos – como os dos bancos, das estruturas de saúde, dos transportes e os exclusivos à governação – dependem de um conjunto limitado de fornecedores de serviço na nuvem, também eles interdependentes. Quando ocorre alguma falha num desses sistemas, todos os serviços são afetados. Ou seja, um sistema que se supõe robusto, devido ao facto de ser distribuído, acaba por se comportar como se fosse fortemente centralizado, representando um ponto único de falha. Além disso, a dependência desse leque de fornecedores de serviço impossibilita um controlo e uma responsabilização eficazes, deixando empresas e governos de mãos praticamente atadas.

Percebemos, assim, que o destino de nações inteiras está dependente de algumas companhias e não do voto dos cidadãos. Não será isto uma ameaça para a democracia? Ou, pelo contrário, estaremos a dramatizar uma questão meramente técnica?

A realidade é que, quer se queira quer não, as tecnologias da informação e comunicação conduziram a uma concentração de poder em entidades privadas e supranacionais. Um reduzido número de gigantes tecnológicos – entre os quais a Microsoft, a Google e a Amazon – controlam partes essenciais das infraestruturas tecnológicas de todo o Mundo, detendo, assim, um enorme poder sobre economias e governos. As nações dependem, como nunca, de decisões dessas companhias, determinadas pelos seus interesses e não por interesses nacionais nem pelo bem-estar dos cidadãos. É certo que os governos podem – e devem – regulamentar esses sectores, mas, na verdade, a complexidade e a velocidade do desenvolvimento tecnológico acabam, frequentemente, por ultrapassar essa regulamentação.

(Créditos fotográficos: Patrick Hendry – Unsplash)

Para além de tudo isto, existe ainda a possibilidade – constantemente utilizada – do condicionamento do acesso à informação e da influência sobre a opinião pública. Os gigantes das redes sociais desempenham um papel-chave na formação da opinião pública e no resultado de eleições, ao decidirem sobre a informação que é apresentada a cada utilizador. O poder para influenciar é enorme e, de facto, reside em companhias privadas multinacionais, muitas vezes, geridas com mão de ferro por uma única pessoa, que muitos idolatram pela sua incomensurável fortuna. Perante isto, qual o poder das instituições democraticamente eleitas?

Em conclusão, para os que defendem um mundo sem fronteiras, a boa notícia é que ele já existe, e a má é a de que esse mundo está muito longe de ser um paraíso. Por outro lado, para os que defendem mais fronteiras, não há boas notícias. E a má é que as fronteiras físicas nada podem contra a universal dependência tecnológica. Sobram os moderados, que têm pela frente o árduo e interminável trabalho de arranjar formas de garantir o instável equilíbrio entre desenvolvimento tecnológico, poder corporativo e democracia.

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03/10/2024

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Fernando Boavida Fernandes

Professor catedrático da Faculdade de Ciências e Tecnologia da Universidade de Coimbra, sendo docente do Departamento de Engenharia Informática. Possui uma experiência de 40 anos no ensino, na investigação e em engenharia, nas áreas de Informática, Redes e Protocolos de Comunicação, Planeamento e Projeto de Redes, Redes Móveis e Redes de Sensores. É membro da Ordem dos Engenheiros. É coautor dos livros “Engenharia de Redes Informáticas”, “Administração de Redes Informáticas”, “TCP/IP – Teoria e prática”, “Redes de Sensores sem Fios” e “Introdução à Criptografia”, publicados pela FCA. É autor dos livros “Gestão de tempo e organização do trabalho” e “Expor ideias”, publicados pela editora PACTOR.

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