Uma janela de Idanha
O poder deste lugar rouba-me o olhar. Nestes momentos de contemplação, recolho-me na imensidão da paisagem raiana, do alto do alcantilado cabeço onde se situa a vila de Idanha-a-Nova. A seus pés, corre gentilmente o rio Ponsul. Da minha janela, contudo, não o vejo. Adivinho-lhe as mansas águas que irão abraçar a barragem Marechal Carmona, conhecida como a Barragem de Idanha, de cálidas e serenas águas, onde corpo e alma se banham e ganham novo fulgor, em comunhão com a paisagem natural.
Descendo o íngreme cabeço, eis que a pequena ponte sobre o rio Ponsul se abre à capelinha da Senhora da Graça, plantada entre duas estradas, cada qual com seu sentido.
Desta janela, o meu olhar detém-se, ao admirar a grandiosa campina. É aloirada pelo sol no verão e salpicada por um verde teimoso, aqui e ali. O olhar alonga-se e perde-se no infinito, caminhando para terras de Espanha, tocando na sua viagem, Castelo Branco, e beijando, entretanto, o Alto Alentejo.
Observo a cegonha que regressou ao seu ninho habilmente construído no cimo do poste mais próximo e, elevando o olhar, vejo uma águia no seu voo ágil e veloz, rasgando o céu azul.
Da minha janela adivinho, num ermo da campina, a Ermida da Senhora do Almortão:
Onde tendes a morada?
– Ao cimo da calçadinha
Numa casa caleada.
Agiganto-me e vou até lá.
Sinto o aroma do rosmaninho e o som dos adufes. Um mar de gente, em dia de romaria, contrasta com a pacatez das aldeias do concelho e da vila de Idanha-a-Nova, no seu dia-a-dia. Sagrado e profano convivem em harmonia. Depois da missa, segue-se a merenda. Os romeiros partilham o farnel.
Depois do almoço, no alpendre da capela, ecoam os adufes e os cantares celebram a fé com devoção. A imagem da Senhora do Almortão é venerada num ambiente de paz e amizade. As vozes também dizem encontros e reencontros. São vozes felizes, num dia singular.
Conta uma versão da lenda da Senhora do Almortão que há muitos anos, na proximidade da atual Ermida, crescia em abundância um arbusto. A murta.
Um pastorinho que vivia na povoação de Alcafozes, todos os dias vinha com o seu rebanho para estes terrenos.
Certo dia, enquanto vigiava o seu rebanho, o rapazinho encontrou no meio de uma moita de murta, uma “bonequinha” de pedra. Serviu a linda imagem para o entreter durante toda a tarde, brincando com ela.
De partida com o seu rebanho, colocou a “bonequinha” no sarrão (saco feito de pele de ovelha, no qual o pastor levava a merenda) ansioso para a mostrar à mãe.
Ao chegar a casa, contou-lhe o que se passara, mas, ao querer mostrar a sua “bonequinha” (como ele lhe chamava), não a encontrou.
Quando regressou ao mesmo terreno, no dia seguinte, foi encontrá-la, de novo, no meio da moita de murta.
Voltou a brincar com ela, enquanto apascentava o rebanho e, ao partir, guardou-a no sarrão para que a mãe a visse. Contudo, ao chegar a casa, não a encontrou, outra vez.
Durante os dias que se seguiram, aconteceu o mesmo.
Foi então que o pastorinho e a sua mãe decidiram contar o sucedido às pessoas mais próximas, familiares e amigos.
De boca em boca, correu a história e se concluiu que a linda “bonequinha” era uma imagem da Senhora, devendo fazer-se uma capela no lugar onde o rapazinho a encontrava sempre.
Fizeram a capela e denominaram a Senhora com o nome de Almortão por ter aparecido no meio de uma moita de murta.
Quando pela primeira vez ouvi esta lenda, pareceu-me ser uma história fantástica para crianças. Na verdade, é. Talvez por isso, gosto dela, tanto mais que todas as histórias para crianças o são também para adultos.
“Terra de ninguém…”, pensei, quando há 36 anos, cheguei à vila de Idanha-a-Nova. Não tardei a descobrir que estas terras contam histórias. Algumas muito antigas, outras mais recentes, mas todas cheias de vida e de valiosos ensinamentos, constituindo um património cultural de notável valor.
Muitas são as janelas deste concelho raiano.
Janelas do Mundo. Dos mundos para o Mundo. Um dos exemplos acontecerá em breve, com um evento, quiçá, único: o “Boom Festival”, que regressa em Julho com 41 mil pessoas de 177 nacionalidades.
Faz-se tarde. Outra janela se abre.
Agiganto-me de novo. Estou na barragem. A água tépida e suave lembra-me a linguagem das pedras. Avisto o cabeço de Monsanto.
A memória canta-me uma quadra de Cardoso Marta:
Nunca se sabe em Monsanto,
Onde a águia roça com a asa,
Se a casa nasce da rocha,
Se a rocha nasce da casa…
.
Chama por mim, Monsanto.
Já lá vou! Já lá vou.
23/06/2022