Universidades de Verão ou universidades em vão?
“O que precisamos e o que queremos é moralizar a política e não politizar a moral.” (Karl Popper, 1902-1994)
Não é por acaso que inicio este artigo com a citação de Karl Popper. Este filósofo austríaco tem razão quando defende esta necessidade de moralizar a política e de não politizar a moral. Recordei-me desta frase de Karl Popper porque, há dias, em conversa de café, um amigo meu se referia às universidades de Verão dos partidos políticos em Portugal como um simulacro de catequização das juventudes partidárias, feito em meia dúzia de horas. Nas paróquias da Igreja Católica, os jovens frequentam a catequese, com mestras e mestres catequistas, com o fim de virem a receber os sacramentos, concretamente a Primeira Comunhão, a Comunhão Solene ou o Crisma. Segundo dizia esse meu amigo, os meninos e meninas das juventudes partidárias sujeitam-se às lições dos seus catequistas partidários, procurando depois provar que já estão habilitados a entrar, de rompante, na carreira partidária.
De acordo com o que foi divulgado na comunicação social, neste ano, 80 jovens frequentaram a Academia Socialista (do Partido Socialista), num hotel da Batalha, discutindo – entre eles ou com convidados de renome – temas tão diversos como a inflação, as lições da pandemia, a questão das desigualdades sociais. Segundo um dirigente do PS, foi importante que os jovens se ouvissem uns aos outros e que as suas preocupações possam vir a ser, futuramente, reflectidas na acção política do partido. Tratou-se, na opinião do tal dirigente, de um bom exercício de escuta activa, a que não pretendemos tirar qualquer mérito, até porque esta é das melhores formas de aprendizagem.
Consta que o mesmo se passou no Partido Social Democrata (PSD), em que uma centena de jovens aderentes à Universidade de Verão deste partido tiveram oportunidade de reflectir sobre as questões do ambiente, da economia, da saúde, entre outros, como noticiaram os media.
Não deixa de ser curioso, no entanto, que os maiores partidos (PSD e PS) sejam tão lacónicos nas informações sobre estas, erradamente, chamadas universidades de Verão. Mas o mais curioso é que outros, nomeadamente o Bloco de Esquerda (BE), são muito mais claros quando fazem a divulgação dos conteúdos tratados em tais jornadas.
Assim, neste ano, o BE discutiu temas tão diversos como a cultura por detrás de Silicon Valley; a saúde mental: o que está por concretizar nas políticas públicas; como mobilizar e unir a cidadania no combate à extrema-direita; os riscos do antissemitismo na actualidade; as ameaças do capitalismo ao movimento LGBTQI+; a inteligência artificial (IA) e o trabalho: a criatura e a traição ao criador?; as ideias de Andreas Malm e o movimento climático; a cidadania na escola: a perspectiva crítica; como travar a ânsia privatizadora na saúde; desocultar o idadismo de género; para onde vai a Europa?; da revolução sandinista à contra-revolução orteguista; a história das pessoas ciganas em Portugal; deficiência e direitos reprodutivos; descentralização e serviços públicos: que consequências?; urbanismo e espaço público: como construímos cidades mais justas?; verticalidade e horizontalidade na organização política: partido versus movimentos; reforma da Justiça; política, revolução e resistência: pode a memória ser uma ferramenta de transformação social?; a guerra e o perigo nuclear: o que reserva o futuro?; semana de quatro dias de trabalho: faz sentido?; mobilidade e cidades: o que queremos?; desmontar a cultura conservadora na era ultradigital; verdade e reparação: o que fazer com o passado colonial português?; política de consumos em Portugal: o que falta fazer?; Pacto em matéria de Migração e Asilo: mais um passo na Europa Fortaleza; o capital que ameaça o jornalismo; as potências do feminismo contra o conservadorismo; novos modelos pedagógicos e democratização da escola; agenda mediática e crescimento da extrema-direita; caminhos para a libertação da Palestina.
Se compararmos este extenso programa do BE com os do PS e do PSD, somos obrigados a admitir que este programa é muito mais exaustivo e que trata de assuntos muito relevantes na formação de qualquer quadro político. Mas, para nós, a questão de fundo é outra: por mais desenvolvidos que sejam os temas e os programas destas universidades de Verão, elas são apenas um arremedo de formação política destes candidatos. Claramente, todos sabemos que cada jovem participante nestas iniciativas tem outras habilitações, em resultado dos cursos superiores que frequentam e que, certamente, os orientarão muito melhor na sua futura acção política.
Em certos países europeus, sobretudo na França, ninguém entra na vida política activa sem ter feito estudos especializados em instituições superiores que cobrem diferentes áreas como o Direito, a Gestão, a Economia e as Relações Internacionais. Em França, há licenciaturas, mestrados e doutoramentos sobre estas matérias. Além disso, depois destes cursos, os jovens franceses podem, por exemplo, especializar-se em certos campos de actuação, realizar estágios, desenvolver pesquisas, participar em formações nacionais para o serviço público e cursar programas em parceria com outras instituições da Europa. Podemos dizer que em Portugal acontece, hoje, algo parecido. Mas estará ainda longe deste esquema francês, que consideramos muito mais bem organizado. E o mesmo acontece noutros países, a exemplo na Dinamarca.
O mais perigoso destas universidades de Verão, em Portugal, é que, por vezes, se fica com a sensação de que os partidos políticos nos querem convencer de que os jovens, contrariamente ao que a maioria defende, têm, afinal, paixão pela política. Quem dera que assim fosse! Mas não cremos que tal seja verdade. Além disso, estas universidades de Verão são extremamente selectivas e o seu recrutamento será realizado, sobretudo, entre os militantes partidários, fechando a porta a cidadãos independentes. Talvez isso seja mais notório nos dois maiores partidos: PS e PSD. Porém, acreditamos que no Bloco de Esquerda existe uma maior abertura aos independentes.
Uma coisa de que estas universidades de Verão não se livram é a de que os cidadãos, em geral, as considerem como espectáculo mediático degradante, porque os jovens – que deviam ser os actores principais – são, muitas vezes, relegados para plano secundário, enquanto no primeiro plano aparecem os figurões partidários que estão no activo ou os que estando já retirados da vida política activa ganham novo fôlego nestas alturas – parecendo até, em alguns casos, que têm de fazer prova de vida! O espectáculo que as televisões, com os seus directos, nos trazem chega a ser lastimoso. São directos e directos! São corridas dos repórteres atrás de quem, intencionalmente, não abre a boca e só quer a glória de uns segundos de fama.
Outra ideia que os grandes partidos parecem apostados em mostrar é a de que estas universidades de Verão são excelentes modelos de formação académica. Mas não creio que as pessoas se deixem enganar e acreditem em tal. Formação política séria não é isto. Exige-se muito mais. Não basta este folclore que, invariavelmente, termina com os discursos empolgados dos líderes, confortados com as centenas de bandeirinhas a acenar, julgando que nos convencem que são, afinal, a desejada cereja no topo do bolinho!
Como dizia Aristóteles, “a única verdade é a realidade”. Todavia, em Portugal, fica claro que estas universidade de Verão são apenas, na maior parte dos casos, instrumentos ao serviço dos líderes políticos do momento. O que lhes interessa são as câmaras das televisões e as máquinas fotográficas dos jornalistas.
A propósito deste tema, Felisbela Lopes, professora de Jornalismo na Universidade do Minho, escreveu, no Jornal de Notícias (em 25/08/2016): “Mais do que promover uma semana de verão, as universidades ou escolas dos partidos poderiam criar várias réplicas disso ao longo do ano. Mais permanentes, mais participativas, mais diversificadas, mais inovadoras. Poder-se-á dizer que as juventudes partidárias constituem lugares de formação política. Até certo ponto, isso é verdade. Todavia, persiste a ideia de que essas estruturas são demasiado fechadas e vergadas a lógicas de poder avessas a quem não é filiado. Seria saudável que os partidos saíssem do perímetro das suas sedes e promovessem outros polos de debate político, chamando mais pessoas descomprometidas com o cartão de militante, sobretudo jovens. É urgente e necessário debater o país que estamos a construir e isso demanda uma participação alargada. Com jovens de diferentes idades, de origens geográficas distintas e oriundos de meios diversificados. E já agora orientados por pessoas que não estivessem aí ao serviço de uma notícia nos média. [sic]”
Uma coisa nos parece que tem de ficar clara: mais do que Universidade de Verão, o que temos é universidades em vão! Isto por razões óbvias! O que pode ter este título pomposo “Universidade de Verão” a ver com o trabalho sério, digno, esforçado e rigoroso, que centenas e centenas de alunos e de professores fazem nas verdadeiras universidades? Talvez a pergunta mais importante que podemos colocar seja esta: que contributos válidos para o país sairão destas universidades de Verão?
Não estaremos, como já alguém escreveu, apenas perante meras lavagens ao cérebro dos jovens aspirantes a políticos que se deixam encantar pelos assobios das sereias? Lavagens que servem para formatar as cabeças dos que ainda têm paciência para tomar estas injecções ideológicas que, hoje, vêm, sobretudo, de uma direita neoliberal e que fazem as delícias da comunicação social em período em que nada de relevante acontece?
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Nota do Director:
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26/09/2024