Vale a pena roubar livros?
Uma das notícias destacadas em primeira página, pelos jornais que resistem, é a de que a Rússia lançou, nesta sexta-feira, mais de 90 mísseis e 200 drones contra infra-estruturas energéticas em várias regiões da Ucrânia, submetendo milhões de pessoas à falta de electricidade e de aquecimento, numa época em que grande parte do país se defronta com temperaturas negativas. Como se não bastasse o terror da invasão e da morte à espreita! Estratégias de quem não tem tempo para cuidar de si, mas que se julga capaz de sobreviver sem os outros.
Infelizmente, o registo da passagem dos séculos lembra-nos que a vontade de subjugar os povos por uns quantos facínoras se repete e amplia com as novas possibilidades tecnológicas dos equipamentos de guerra e do deslaçamento social. Na Terra de hoje, importa questionar, como o faz Alexandra Lucas Coelho, no seu recente artigo intitulado “Cristo está morto em Gaza, e não vai nascer sozinho”: “Não é Natal, é uma vala comum. Onde estão os 2,2 mil milhões de cristãos do mundo desde 7 de Outubro?”
Neste período, em que muitos de nós gastamos mais do que o necessário em prendas que não se podem comparar com o amor que um simples par de meias, por vezes, contém, seria mais proveitoso pararmos para reflectirmos também acerca do nosso comportamento nos anteriores meses do ano. De facto, esquecemos que as diferentes pátrias são o resultado do que as pessoas fazem e permitem que nelas se faça, não obstante as reiteradas ausências da democracia e da fraternidade. Queixamo-nos ainda de que somos manipulados pelos cordelinhos dos accionistas e de um capital sem rosto e que, por isso, andamos numa fona e não temos tempo para cuidar dos nossos pais nem para percebermos os medos dos nossos filhos. No entanto, há sempre uma oportunidade, mesmo que breve, para nos olharmos ao espelho e descobrirmos o significado das nossas rugas e do tempo que desperdiçamos em bagatelas egoístas.
Eu próprio acumulo leituras adiadas, muitas delas fundamentais para um outro entendimento da realidade das coisas e da natureza humana. Por mero acaso, revi o filme que nos conta a história de Liesel Meminger, uma rapariga cuja mãe, uma suposta comunista, no contexto de uma Alemanha nazi ou do Terceiro Reich, se viu forçada a deixar os filhos ao cuidado de um casal de um subúrbio pobre de Munique que os adopta por dinheiro. O irmão morre na viagem de comboio, mas a Morte (que assume o papel do narrador e nos orienta na sua perspectiva) poupa a menina que é capaz de transformar a vida dos que estão à sua volta, semeando esperança num território dominado pela brutalidade da Segunda Guerra Mundial.
A Liesel (admiravelmente interpretada por Sophie Nélisse) descobre que as palavras e a imaginação são um refúgio e um modo de enfrentar os horrores da carnificina e da intolerância do regime hitleriano. “A Rapariga Que Roubava Livros” é um drama cinematográfico, realizado por Brian Percival e baseado no livro homónimo de Markus Zusak, de uma menina de nove anos que aprende a ler com o seu pai adoptivo, através dos livros que toma de empréstimo – como afirma – na biblioteca do prefeito da cidade. Assim, enquanto os nazis fazem arder os livros em fogueiras, ela partilha o que vai lendo com os que lhe estão próximos e com um judeu escondido em casa.
Na certeza de que ninguém vive para sempre, cabe-nos aproveitar o poder da leitura, da amizade e da nossa capacidade de resistir ao pensamento único e às ditaduras de toda a espécie.
Vale a pena roubar livros? Talvez. Sobretudo, quando somos confrontados com o Programa de Avaliação Internacional de Competências de Adultos, promovido pela Organização para a Cooperação e Desenvolvimento Económico, que, entre os 31 países participantes, coloca os Portugueses na cauda da tabela nos parâmetros da literacia, da numeracia e da resolução adaptativa de problemas.
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Nota:
O presente artigo (na versão de crónica) foi publicado na edição de ontem (domingo, 15 de Dezembro) do Diário de Coimbra, no âmbito da rubrica “Da Raiz e do Espanto”.
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16/12/2024