“Venha ver o sangue nas ruas…”

 “Venha ver o sangue nas ruas…”

Pablo Neruda (tudoepoema.com.br)

A primeira vez que li e ouvi o verso “¡Venid a ver la sangre por las calles!” – do poema “Explico algunas cosas1, de Pablo Neruda – senti o arrepio de um espectador longínquo, incapaz e impotente num território distante. O poema de Pablo Neruda é tão impactante como as imagens do quadro “Guernica”, de Pablo Picasso. Só um espectador próximo (e Neruda foi) poderia ser capaz de descrever um cenário como aquele que se viveu na Guerra Civil Espanhola2.

Mural na cidade espanhola de Guernica com uma reprodução da obra original “Guernica”, de Pablo Picasso. (pt.wikipedia.org)

A Espanha sempre nos foi muito próxima, por motivos naturais. Crescemos herdeiros de um mundo ibérico dominado pelo Castelhano e pelos relatos e convívio de republicanos e de emigrantes que fizeram do Chile a sua segunda pátria.

As últimas eleições em Espanha e os seus resultados estão a fazer efeito: os militantes do Partido Popular (PP) e do Vox (fundado em 2013, por antigos partidários do PP) já dão as mãos, assaltando o governo central para retroceder com as leis aprovadas pelo governo socialista.

Cidadãos madrilenos no meio dos escombros, no fim da Guerra Civil Espanhola. (brasilescola.uol.com.br)

A direita não tem vergonha. Querer voltar atrás com a Lei da Memória, quando já se iniciou a recuperação das ossadas das vítimas de Cuelgamuros, chamado Vale dos Caídos pelo regime franquista3.

Interrogo-me quanto a se poder voltar atrás neste processo. É possível esquecer quase meio milhão de mortos numa das guerras mais sangrentas da Europa? Poderemos esquecer o Holocausto, a Guerra Civil da Jugoslávia (entre 1991 e 2001) e os actuais conflitos que nos assolam e cercam na proximidade das nossas fronteiras?

Federico García Lorca (detroitopera.org)

No recente mês de Junho, cumpriram-se 125 anos sobre o nascimento de Federico García Lorca (nascido em Fuente Vaqueros, na província de Granada, a 5 de Junho de 1898), considerado como a primeira e mais simbólica vítima da Guerra Civil de Espanha. Afortunadamente, a dimensão deste poeta universal é de tal ordem que não poderá haver governo populista-franquista-voxista que o faça esquecer. Ele, como os grandes de Espanha, não tem fronteiras nem tem país, mas tem uma língua e uma poesia que nos ultrapassa a todos, que nos comove, que nos inunda e que faz de nós testemunhas de uma época que foi a sua, enquanto poeta, e também nossa, já que é eterna.

A exumação forense de 128 vítimas do Vale Cuelgamuros (antigo Vale dos Caídos) começou a 12 de Junho do corrente ano, na Comunidade de Madrid. Na cripta da Capela do Santo Sepulcro, no nível 0, encontram-se os restos mortais dos primeiros 18 corpos reivindicados por familiares das vítimas, incluindo os irmãos Lapeña, naturais de Villarroya de la Sierra (município na província de Saragoça).

O Vale dos Caídos é uma enorme vala comum. (© Pixabay – tsf.pt)

O antigo Vale dos Caídos, rebaptizado de Vale de Cuelgamuros, após a nova lei da Memória Democrática, também foi o local de sepultura dos restos mortais do ditador Francisco Franco e do fundador do movimento e partido fascista Falange Espanhola, José Antonio Primo de Rivera. Ambos já foram retirados do lugar: Franco, em 2019, por ordem do Governo, e Primo de Rivera, neste ano, em aplicação da lei.

O monumento, que inclui uma basílica, localizado perto de Madrid, foi mandado construir pelo ditador após a Guerra Civil Espanhola (1936-1939) e tornou-se um símbolo do franquismo, sendo considerado a maior vala comum da Espanha.

Harold Pinter (pt.wikipedia.org)

Aí, descansam – se podemos utilizar esta palavra (pois, não haverá descanso possível!) – 33.833 vítimas de ambos os lados da guerra (defensores da república e rebeldes), dos quais quase 15 mil não foram identificados, a maioria do lado republicano, cujas famílias reivindicam os seus restos mortais.

A propósito, menciono Harold Pinter, recordando as palavras do dramaturgo inglês, no seu discurso de agradecimento na entrega do Prémio Nobel da Literatura, em 7 de Dezembro de 2005, com o título “Arte, verdade e política”, referindo-se ao poema “Explico algunas cosas”, de Pablo Neruda, inicialmente indicado: “Cito Neruda porque na poesia contemporânea não encontrei nenhuma descrição mais poderosa e visceral do bombardeio de civis.”

.

Notas:

1Preguntaréis por qué su poesía / no nos habla del sueño, de las hojas, / de los / grandes volcanes de su país natal? / Venid a ver la sangre por las calles, / venid a ver / la sangre por las calles, / venid a ver la sangre / por las calles!”

2 – A Guerra Civil Espanhola (1936-1939) foi um conflito gerado dentro da chamada II República Espanhola que terminou com o general Franco no poder. (brasilescola.uol.com.br)

3 – Numa breve consulta, recorrendo à Wikipédia, lemos que o Vale de Cuelgamuros, era conhecido como Vale dos Caídos. Consiste num memorial franquista monumental, com uma basílica erguida entre 1940 e 1958, a cerca de 40 quilómetros de Madrid, no município de San Lorenzo de El Escorial, em memória dos mortos na Guerra Civil Espanhola, de 1936 a 1939.

.

06/07/2023

Siga-nos:
fb-share-icon

Roberto Merino

Roberto Merino Mercado nasceu no ano de 1952, em Concepción, província do Chile. Estudou Matemática na universidade local, mas tem-se dedicado ao teatro, desde a infância. Depois do Golpe Militar no Chile, exilou-se no estrangeiro. Inicialmente, na então República Federal Alemã (RFA) e, a partir de 1975, na cidade do Porto (Portugal). Dirigiu artisticamente o Teatro Experimental do Porto (TEP) até 1978, voltando em mais duas ocasiões a essa companhia profissional. Posteriormente, trabalhou nos Serviços Culturais da Câmara Municipal do Funchal e com o Grupo de Teatro Experimental do Funchal. Desde 1982, dirige o Curso Superior de Teatro da Escola Superior Artística do Porto. Colabora também como docente na Escola Superior de Educação de Paula Frassinetti, desde 1991. E foi professor da Balleteatro Escola Profissional durante três décadas. Como dramaturgo e encenador profissional, trabalhou no TEP, no Seiva Trupe, no Teatro Art´Imagem, na Faculdade de Ciências da Universidade do Porto (UP) e na Faculdade de Direito da UP, entre outros palcos.

Outros artigos

Share
Instagram