Cara doutora Graça Freitas,

Há um título de um livro de um seu colega – Ricardo Jorge – que gostaria de poder usar num livro que quero escrever mas tardo em fazê-lo. Chama-se Canhenho de um Vagamundo e é, como o próprio título indica, um caderno de um viajante.

O médico e professor de Medicina que, há cem anos, ocupava o lugar que a doutora Graça Freitas hoje ocupa, como Directora-Geral de Saúde, gostava de viajar, privilégio raro no início do século XX, e sabia tirar proveito das viagens que fazia.

O doutor Ricardo Jorge também sabia escolher um bom título – canhenho é a palavra mais adequada para tornar um caderno de apontamentos de viagens muito apelativo e vagamundo um nome quase romântico para definir um viajante.

Eu, que adoro viajar, só tenho, ultimamente, escrito e reescrito versos contrafeitos tentando, por exemplo, apanhar a alma deste tempo que estamos todos a viver na angústia de uma pandemia que nos assusta, mais ainda agora que estamos, por alguns dias, sem os seus conselhos serenos.

Versos contrafeitos de um velho candidato a vagamundo como aqueles que lhe vou transcrever, em quarta ou quinta versão, num rascunho de canhenho que não será ainda o definitivo.

Quando esta crise passar, / esperam por mim, espero, / na bela Estação Central / da bela Vladivostok. / Já disse querer morrer / na bela Vladivostok / mas depois de lá viver / pelo menos uns dez anos. // Quando esta crise passar / e puder por fim cumprir / a desejada viagem / à bela Vladivostok, / vou abrir o melhor vinho / que transporte na bagagem / e talvez até aprenda / a dedilhar balalaikas. 

Preciso, portanto, que a doutora volte e traga consigo a esperança de dias melhores, menos confinados. Eu sei que não depende de si, que depende de nós, mas isto é uma maneira de falar no jeito de quem apenas quer enviar-lhe um postal, uma pequena atenção para quem merece muito mais.

Envio-lhe uma aguarela que esquissei em Luanda, há dez anos, quando ali estive a fingir que era ghostwriter, autenticamente confinado, no meu quarto de hotel, sempre que não estava em serviço. Há dez anos ainda não conhecia o verbo confinar…

Regresse, por favor, depressa e totalmente recuperada. O país precisa de si. 

Obrigado e desculpe lá este atrevimento.

Júlio Roldão

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Júlio Roldão

É jornalista desde 1977. Nasceu no Porto, em 1953, e estudou em Coimbra, onde passou, nos anos 70, pelo Teatro dos Estudantes da Universidade de Coimbra (TEUC) e pelo Círculo de Artes Plásticas (CAPC), tendo, em 1984, regressado ao Porto, onde vive.

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