Querida Guida

Há sessenta anos, o então estudante de Coimbra Artur Marinha de Campos publicou na revista “Via Latina”, órgão da Associação Académica de Coimbra, onde, orgulhosamente, também já escrevi, há sessenta anos, dizia, Marinha de Campos publicou a célebre “Carta à Jovem Mulher Portuguesa”, um texto marcante para a época a remeter para o pensamento de Simone de Beauvoir. Sim, sim, Simone de Beauvoir, a celebrada autora de “O Segundo Sexo”, obra de referência para a afirmação da identidade feminina. “Não se nasce mulher, torna-se mulher”, disse Beauvoir criando uma máxima ainda hoje assumida.

Beauvoir opunha-se nessa obra a uma sociedade baseada, socialmente, na divisão dos sexos. Uma sociedade que resistia, como ainda hoje resiste,  a optar pela unidade do género humano e pela liberdade. Doze anos mais tarde, a Carta à Jovem Mulher Portuguesa, de Marinha de Campos, ainda não colocava as questões assim. Em 1961, Portugal ainda não era suficientemente livre para um debate desses. A liberdade, entre nós, só chegaria 13 anos depois.

Nos 47 anos que, entretanto, já levamos de Democracia, muita coisa mudou. Não tudo o que desejaríamos, mas muita coisa mudou. Nomeadamente no que estava subjacente à carta de Marinha de Campos, muito centrada no relacionamento afectivo, entre homens e mulheres, numa Coimbra em 1961 muito conservadora nesse como noutros aspectos.

A Coimbra a que hoje regressas é muito diferente da cidade onde estudaste, apesar dos teus anos universitários terem sido vividos já no século XXI, com Erasmus e tudo. Hoje, querida Guida, regressas a essa cidade enfrentando outros desafios, também muito importantes, como são os do acesso a lugares de chefia, ainda não tão acessíveis às mulheres quanto seria desejável. Talvez seja tão assustador quanto dar um beijo, em 1961, a um homem, como referia Marinha de Campos na carta publicada na “Via Latina”. Mas hoje já não precisas de receber uma carta a alertar-te para este desafio do empoderamento.

Nem sequer precisarias de um postal, mesmo que ele reproduza uma alentejana do Manuel Pavia, um dos grandes retratos de mulheres portuguesas, tal qual os que ele desenhou para a grande obra de Maria Lamas “As Mulheres do Meu País”, publicada em fascículos com início em Maio de 1948. Um ano antes da Simone de Beauvoir publicar “O Segundo Sexo”. 

Acresce, porém, que esse teu novo desafio surge, por coincidência, quando parece que esta terrível pandemia que nos tem tolhido estará em vias de ser minimamente controlada. É mais um sinal positivo. Para ti e para a geração que, a meus olhos, representas. Sei que estás à altura do que, esperançadamente, esperamos. Eu e a geração que represento.

Muita força e um beijinho do teu velho amigo

Júlio Roldão

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Júlio Roldão

É jornalista desde 1977. Nasceu no Porto, em 1953, e estudou em Coimbra, onde passou, nos anos 70, pelo Teatro dos Estudantes da Universidade de Coimbra (TEUC) e pelo Círculo de Artes Plásticas (CAPC), tendo, em 1984, regressado ao Porto, onde vive.

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