Meu querido Pena dos Reis

Gostei muito de ter estado contigo, no sábado, em casa do Vergílio, naquela casa com vista para o Lago da Aroeira, em Almada, na Charneca da Caparica. Também gostei de rever a Mitó e o teu irmão. E de conhecer as outras pessoas presentes na festa do aniversário do Vergílio para a qual este ano também fui um dos convidados.

No longo espaço de tempo que passou desde a penúltima vez em que nos cruzamos e o encontro de sábado, um período de quase quatro décadas, nesse tempo tornaste-te num prestigiado procurador da República, num Procurador-Geral Adjunto, num professor do Centro de Estudos Judiciários, agora aposentado, e num poeta e escritor igualmente exigente.

A penúltima vez em que nos cruzamos terá sido na Clepsidra, antes de te afirmares como uma referência entre os magistrados do Ministério Público. Nos quarenta anos que se seguiram, fui-me referindo a ti com aquele orgulho de poder dizer que te conhecia e que tinha privado contigo sempre que eras notícia e sempre pela positiva. Afinal foste uma das pessoas que mais contribuiu para a minha formação cívica.

Se me tivesse cruzado contigo nesse período não sei se ousaria abordar-te com esta informalidade. Como jornalista, com alguma formação jurídica, sempre olhei para os magistrados com um certo distanciamento, num reconhecimento pela função que exercem. E este meu olhar sobre todas as magistraturas solidificou-se no quadro do nosso Estado de Direito Democrático. Indirectamente, também aprendi isso contigo.

Foi por isso muito agradável reencontrar-te no sábado e perceber que continuas a ser um orador entusiasmado que apetece ouvir principalmente quando levantas dúvidas politicamente pouco ou nada confortáveis. Sempre foste assim, enquanto dirigente estudantil e cidadão empenhado em mobilizar os teus pares mais indecisos. Terás de me desculpar, mas continuo a ter orgulho de poder dizer que te conheço e que privo contigo.

Em 2008, escrevi um texto para um livro sobre a Clepsidra que integrou uma colectânea dedicada a espaços perdidos de Coimbra. Nesse trabalho – “A Memória e a Imaginação” – lembro a primeira vez que me cruzei contigo. Cito-me então: “A reunião da malta de Direito é nos Fantasmas, aqui ao lado, avisa na Clepsidra, o estudante Pena dos Reis. (…) A convocatória é tão imperativa que eu, recém-chegado a Coimbra, também vou. Como sou um dos raros alunos do primeiro ano presentes na reunião, querem incumbir-me de distribuir uns comunicados nos Gerais. Recusar a tarefa é fácil. O difícil é explicar a razão da recusa, apesar de ser óbvio que eu não devo distribuir um comunicado sobre lutas e assuntos que desconheço totalmente. Começo a ser insultado, de reaccionário para cima. Trinco a língua para não chorar de raiva à frente deles. Na verdade, eu nem ainda sei o que é um reaccionário. Só sei que estes epítetos são insultuosos”.

Como vês foi marcante… Nesse dia, de Novembro ou Dezembro de 1971, terei jurado nunca mais voltar à Clepsidra, esse bar frequentado pela malta de esquerda. Quarenta e cinco anos depois escrevia e publicava o poema “Clepsidra, meu amor”, que reeditei, anteontem, sob a forma de um marcador de livros que sonha ser livro, para oferecer às pessoas que compareceram na festa do aniversário do Vergílio.

Não sei se Coimbra continua a ter sítios de afectos como o foi a Clepsidra. Espero que sim. O que eu sei é que sem essas cumplicidades não se consegue, não sei quantas décadas depois, manter a conversa em dia como se tivéssemos estado juntos na véspera. 

Hoje, só quero dizer isto. É que, realmente, gostei muito de ter estado contigo, no sábado, em casa do Vergílio, naquela casa com vista para o Lago da Aroeira, em Almada, na Charneca da Caparica. Onde aguarelei o postal que te envio.

Um abraço do

Júlio Roldão

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Júlio Roldão

É jornalista desde 1977. Nasceu no Porto, em 1953, e estudou em Coimbra, onde passou, nos anos 70, pelo Teatro dos Estudantes da Universidade de Coimbra (TEUC) e pelo Círculo de Artes Plásticas (CAPC), tendo, em 1984, regressado ao Porto, onde vive.

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