Cara arquitecta Ana Costa,

Há dias, numa virtual visita guiada à Estação Fluvial Sul e Sueste, após as profundas obras de reabilitação do magnífico espaço que a arquitecta Ana Costa orientou, senti vontade de voltar a essa varanda sobre o estuário do Tejo, estação que tantas vezes atravessei quando seguia de comboio para o Algarve.

Quando, em criança, ía com os meus pais ao Algarve, apanhando o rápido que saía de Campanhã às 18h45 para chegar a Lisboa-Santa Apolónia à meia-noite, nas noites em que não chegava com muito atraso, sabia que a segunda etapa da viagem incluía a travessia do Tejo, da Estação de Sul e Sueste para a do Barreiro.

Adorava aquela estação fluvial que o seu avô, o arquitecto Cottinelli Telmo, projectou no ano de 1932. E adorava fazer aquela travessia de Lisboa para o Barreiro. Anos mais tarde, descobri a esperança que podia existir no sentido inverso quando ouvi uma moda popular cantada por Adriano Correia de Oliveira: “Quando eu cheguei ao Barreiro / No barco que atravessa o Tejo. // Chora por mim qu’eu choro por ti / Já deixei o Alentejo.”

E no caminho destas viagens sempre a Estação Fluvial Sul e Sueste, onde o meu pai, também ferroviário (como o senhor seu avô, que foi arquitecto da companhia), comprou, num leilão de perdidos e achados, o Ómega de bolso que sempre usou como relógio pessoal. Relógio que eu guardo com imensa saudade do meu pai.

Na visita guiada que fiz à Estação Fluvial Sul e Sueste, através do programa homónimo da RTP, descobri que a ilustração de uma capa do boletim da CP, publicação institucional dos Caminhos de Ferro Portugueses, essa ilustração que reproduzo neste postal, é da autoria do seu avô. Do seu avô arquitecto, ilustrador, realizador de cinema… Nunca imaginei que o realizador de “A Canção de Lisboa”, o arquitecto da Estação Fluvial Sul e Sueste e também da menos consensual cidade universitária de Coimbra, entre outros projectos, fosse o autor dessa ilustração do boletim da CP, que guardei como uma manifestação modernista do princípio do século XX, cuja autoria, julgo, não era assumida no boletim.

A multifacetada actividade profissional e artística do seu avô prova que, muitas vezes, somos precipitados em rotular pessoas; e que algumas pessoas, pela complexidade das respectivas actividades e da ambiguidade do tempo em que viveram, dificilmente podem ser rotuladas. 

O que uma virtual visita guiada a um edifício icónico sobre o estuário do Tejo pode causar, cara arquitecta Ana Costa! O que podemos descobrir quando visitamos um espaço como a Estação Fluvial Sul e Sueste, após uma obra de reabilitação como a que a arquitecta dirigiu e que, claramente, não desmerece a grandeza da obra do seu avô.

Sem desmerecer na visita guiada na RTP por Paula Moura Pinheiro, termino dizendo que, na primeira oportunidade, irei visitar a Estação Fluvial de Sul e Sueste e imaginar o momento em que o meu pai ali arrematou o Ómega de bolso que sempre usou, um bom ponto de partida para início de uma qualquer narrativa ficcionada centrada na Lisboa da luz boa.

Inesperadamente,

Júlio Roldão

24/01/2022

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Júlio Roldão

É jornalista desde 1977. Nasceu no Porto, em 1953, e estudou em Coimbra, onde passou, nos anos 70, pelo Teatro dos Estudantes da Universidade de Coimbra (TEUC) e pelo Círculo de Artes Plásticas (CAPC), tendo, em 1984, regressado ao Porto, onde vive.

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