A língua e o sofá: o paraíso beatífico do acordo ortográfico
Podemos fazer o que quisermos da língua, compará-la mesmo a um sofá, escarafunchar nela e estragá-la. Vamos lá a ver: alguém há por aí que estranhe o valor meramente instrumental da língua, como o do sofá de sala, servindo o conforto pessoal e o interesse pragmático do repouso? Descansar na língua (atente-se na poeticidade da expressão) assemelha-se, em registo idílico, ao primeiro olhar crítico (assim lhe chamou Eduardo Lourenço) do Criador, ao sexto dia, de pantufas no seu sofá e a olhar a Criação: concluiu que era bom. Reservou, então, o sétimo para o pleno remanso. É uma visão graciosa e singela da coisa. Está muito bem. As pessoas vão de mãos dadas e entendem-se. Um mundo perfeito. Se não fosse curto e indigente.
Num recente artigo de António Guerreiro (Público, 22 de Novembro), e a propósito de Elon Musk, chama-se a atenção para o controlo da linguagem e a perspectiva instrumental que dela tem o magnata: a linguagem humana, como a entendemos, tornar-se-á obsoleta, poderá ser agregada a um sistema cibernético de inteligência artificial reduzido a funções básicas como a informação factual, cumprimento de regras, transmissão de ordens. Serão tempos em que a ficção científica deixará de ser ficção. Sabemos como as palavras são importantes e o modo como, sem termos disso plena consciência, transportamos prescrições ideológicas de raízes profundas, mesmo quando (e por isso também) elas são revisionistas e tendem à desafecção ideológica.
Há quatro anos, e a propósito do cinquentenário do general de Gaulle, Macron referiu-se-lhe como herói da resiliência francesa, mitigada assim a conotação político-imagética da resistência ao nazismo e ao fascismo. Hoje, em Portugal, os conceitos de racismo e xenofobia transmutam-se, pela palavra, em nacionalismo e proteccionismo, e o termo fascismo, na boca de muitos e em culto de programada naturalidade, alija, esconjurando-a, a carga depreciativa de outros tempos. Na esfera da linguagem, assiste-se à despolitização e dessincalização numa desvitalizada res publica, emancipada de enquadramentos colectivos transcendentes, pelo que os trabalhadores passam a colaboradores e o próprio trabalho, sob novas práticas organizacionais, espartilha-se na execução operacional e na gestão de informação e definição de objectivos, nesta nova relação ambígua entre indivíduo e sociedade. E, em boa parte do mundo, o vocábulo genocídio, conforme o perpetrador, assume ou não significação. Portanto, as palavras contam. Mas não somente como significados; contam ainda como significantes, tanto no plano do objecto sonoro como no da imagem visual gráfica. Esta última, a representação da “palavra”.
Quando pensamos em palavras, a sua materialidade percepciona-se melhor na escrita, porque é aí que elas se decompõem em morfemas, sendo mais prático, no plano da grafia, assinalar os efeitos fonéticos, a entoação, a força clítica por acção de consoantes ou vogais finais, mas também os valores semânticos de prefixos e sufixos (o valor avaliativo, o sentido pejorativo ou afectivo, e, portanto, também sociológico e ideológico). Mulherengo, por exemplo, será adjectivo capturado (e em vias de extinção) pelas novas vigilâncias da polícia de costumes da língua. Resumindo: as gramáticas e os dicionários são utensílios fundamentais, preservam práticas, registam admissões dialectais e sociolectais, estimulam a observação de regras (tanto para a língua-padrão como para falares e dialectos) e favorecem a elegância e a riqueza linguística. José Castro Pinto afirmou que “quem diz que um dia acabará a Gramática (como já ouvimos dizer) é porque ainda não compreendeu o que é uma Gramática”.
Isto nasce a propósito da ligeireza com que Isabela Figueiredo afirmou, recentemente (Expresso on line, 14 de Novembro), que, no seu entender, não há para a língua regras, desde que todos nos entendamos. Segundo a escritora, “proteger a língua de maus-tratos é uma tarefa inglória”. Mas, a ser assim, não importa desfigurar a língua, não importa permitir os termos “chulos” e os “vulgarismos” fora de contexto (imagine-se plasmados na Constituição) ou incluir cultismos em prosa popular, não importa ceder aos erros de concordância, não importa confundir – por inépcia – normas de variantes distintas do Português. Nada importa. Diria eu que não importa sequer haver gramáticas ou dicionários. E, provavelmente, filólogos e revisores e, entretanto, professores de língua. Que significa isto? Significa, suponho, que, quanto a si, se eu escrever “Azarmas ius barõins acinaladus” ou “Quero que tu lês e compreendes este texto”, não vai daí mal ao mundo, porque todos nos entendemos.
Nós, que nos opusemos ao Acordo Ortográfico de 1990, apelidados já de velhos do Restelo, Alencares, analfabetos do século XXI, velhotes obcecados, puristas da língua que tomam antiácidos, etc. (acrescentemos “autistas”, “neuróticos”, “casmurros”), e prontos para novos apodos, temos, pelo menos, duas coisas claras. Uma: as línguas são, por natureza, conservadoras – as suas mudanças raramente se produzem internamente, mas como resultado de tensões e de pressões linguísticas externas ou produzidas por artificialismos, como os de reformas ortográficas que possam condicionar a modulação das palavras, o que, traduzido, liquida o argumento da vivacidade estuante das línguas (esse lugar-comum do organismo vivo). Imagine-se uma comunidade isolada do mundo, proceda-se a um estudo diacrónico da língua dos seus falantes e veja-se o que mudou ao longo de séculos. Duas: o Acordo Ortográfico de 1990 (que não chegou, efectivamente, a sê-lo) procura unificar (nem há como camuflar a pretensão deliciosamente fascizante) vertentes que, naturalmente, tendem a afastar-se. Ou seja, ao AO90, para ser bom, só lhe faltam as qualidades…
Nunca me imaginei um eugenista da língua com aspirações a higienismo militante. Leio, não raramente deliciado, Clarice Lispector, Luandino Vieira (angolano, que deveis saber português nascido de cá), Rui Knopfli, José Craveirinha, Corsino Fortes, Vasco Cabral, Alda do Espírito Santo, Fernando Sylvan. O que estranho, então, na posição de Isabela Figueiredo é a sua ambivalência em ser permissiva (ao ponto de ambicionar “estragar” a língua como quem estafa o sofá) e, logo depois, intransigente, quando se trata de deixar cada vertente do Português trilhar o seu caminho sem a rédea curta de um “acordo” ortográfico. Mas tudo isto vinha, apenas, a propósito de palavras.
E as minhas palavras, claro, dirigem-se àqueles que forem capazes de as entender. Ou quiserem, de facto, entendê-las.
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Nota da Redacção:
O presente artigo de António Jacinto Pascoal foi publicado na edição de 5 de Dezembro de 2024 do jornal Público.
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Nota do Director:
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09/12/2024