Ainda sobre a Escola Pública
Deixo-vos aqui, estimados amigos, o essencial da minha intervenção de 29 de Junho (Dia de São Pedro), em Évora, na Sessão Comemorativa do Dia da Cidade, no Palácio de D. Manuel.
«É verdade que se alargou a escolaridade obrigatória e gratuita até ao 12.º ano. E isso foi bom. Foi, mesmo, muito bom. No meu tempo, a escolaridade obrigatória e gratuita era até à chamada 3.ª classe (actual 3.º ano).
É verdade que o parque escolar deu um grande pulo em frente, comparativamente ao de um passado que nos envergonhava.
É verdade que os jardins de infância são, hoje, uma realidade em crescimento.
Mas é também verdade que isso não chega. Está “a léguas” de chegar.
50 anos de liberdade e de democracia mantiveram as duas categorias de escolas que eu conheci a partir dos anos de 1930, há quase um século:
- a privada, ao serviço de uma minoria com capacidade financeira; e
- a pública, para os outros, a maioria, onde cabem uma classe média, mal remunerada, e uma outra, a raiar a pobreza ou a sobreviver dentro dela.
A luta dos professores, numa intensidade nunca vista, trouxe ao de cima, a degradação a que chegou este grande sustentáculo de qualquer sociedade democrática que, entre nós, dá pelo nome de Escola Pública.
Esta degradação está bem estampada nas classificações (ou rankings) oficialmente divulgadas, que põem em evidência uma quantidade preocupante de escolas públicas más e de alunos maus. Uma realidade vergonhosa, que reflecte a muito pouca atenção que tem sido dada a este sector, por parte dos sucessivos governos do Portugal de Abril.
A classe política, no seu todo, a quem os Capitães de Abril, há 50 anos, generosa, honradamente e de “mão beijada”, entregaram os nossos destinos, mais interessada nas lutas pelo poder, esqueceu-se de facultar conhecimento, civismo e cidadania – em suma – à sociedade liberta do sufoco em que vivera.
E, aqui, a Escola falhou completamente.
E não estou só nesta afirmação. Recordo as palavras do então primeiro-ministro, António Costa, em finais de 2015, na cerimónia de entrega do Prémio Manuel António da Mota, no Palácio da Bolsa, no Porto. Ei-las: “De uma vez por todas, o país tem de compreender que o maior défice que temos não é o das finanças. O maior défice que temos é o défice que acumulámos de ignorância, de desconhecimento, de ausência de educação, de ausência de formação e de ausência de preparação.”
A verdade é que esta situação não se inverteu. A verdade é que, depois de 50 anos de liberdade em democracia, continuamos a ser um povo maioritariamente desinteressado pelos valores da ciência e da cultura, alienados pelo “jogo da bola” e em que a grande maioria dos apoiantes e votantes nos partidos políticos desconhecem os fundamentos das respectivas ideologias.
A iliteracia cultural e científica de uma parte importante da nossa população, a todos os níveis socioprofissionais, é a prova provada desse falhanço.
São muitos os portugueses a quem a escola deu e continua a dar diplomas, mas não deu e continua a não dar a educação, a formação e a preparação essenciais a uma cidadania plena.
Verdadeiros défices na educação, na formação e na preparação para uma cidadania plena abriram as portas a um populismo, vazio de conteúdos, a que a democracia deu voz e que, usufruindo da liberdade dessa mesma democracia, nos procura arrastar para um modelo de sociedade que a História já mostrou que sempre nos amordaçou, com consequências funestas.
Todos sabemos que há boas e excelentes escolas públicas, que há bons e excelentes professores, mas o essencial do problema que temos de enfrentar reside na quantidade preocupante de escolas más, de professores maus e de alunos maus.
A oitava ronda do PISA (“Programme for International Student Assessment”), da OCDE (Organização para a Cooperação e Desenvolvimento Económico), em 2023, mostrou que, em trinta países, Portugal ocupa:
- o 30.º lugar em Ciências,
- o 29.º em Matemática e
- o 24.º, em Leitura.
Resultados que nos envergonham e que confirmam as minhas preocupações. Ando a dizê-lo, há décadas, e estes números vêm dar-me razão.
Estes resultados do PISA trazem, ao de cima, uma geração de adolescentes:
- sem interesse pelo saber,
- ignorantes de quase tudo,
- mergulhados a fundo nos seus smartphones, e
- vítimas de reformas educativas que lhes diminuíram ou retiraram a capacidade crítica, em que o rigor foi substituído pela facilidade.
A diluição de disciplinas como História, Filosofia e Literatura é disso testemunho.
As direcções das escolas têm sido pressionadas no sentido de facilitar as aprovações e os professores são convidados a agirem em conformidade.
Reprovar um aluno representa, hoje, para o professor (e para os professores do conselho de turma) ter de justificar essa decisão, depois de elaborar e de aplicar planos e medidas burocráticas (de eficácia nula) que mais parecem um castigo aplicado aos docentes, a que eles fogem subindo as notas.
O actual sistema de avaliações, demasiado injusto, não ajuda a elevar o nível do ensino. Avança-se por quotas e não por mérito. Praticamente, nada avalia. Propostas de avaliações a sério têm sido rejeitadas por parte dos muitos que não querem ou que receiam serem avaliados. Neste capítulo, os maus professores – que os há e não são assim tão poucos, os tais que recusam as avaliações a sério e veem na Escola um emprego assegurado até à aposentação – têm contado com o apoio dos sindicatos, que põem ao mesmo nível os bons e os maus profissionais.
A falta de professores é uma realidade por demais conhecida e todos sabemos porquê: a profissão não agrada a ninguém. O que temos vindo a fazer é pôr remendos.
Todos sabemos e os governos também sabem que a mola real de uma verdadeira e eficaz política de Educação exige dotação orçamental adequada à importância deste sector na sociedade. A verdade é que, se nunca lhe atribuíram essa dotação, é porque a Educação nunca esteve entre as suas prioridades. Muitas vezes “crucificamos” os ministros da tutela, mas esquecemo-nos de que eles são prisioneiros das dotações orçamentais que lhes cabem, no Orçamento Geral do Estado (OGE). Mas também é verdade que, ao aceitarem exercer esse mister, ficam coniventes com as opções dos respectivos governos.
Temos agora um novo governo e um novo ministro da tutela e o meu mais sincero desejo é que ele, ao contrário dos seus antecessores, tenha a força necessária para demolir o mais que obsoleto edifício da Educação que temos tido e, em seu lugar, fazer surgir um outro, concebido e levado a cabo, numa profícua colaboração entre governo e oposições, para durar três ou mais legislaturas e que envolva gente verdadeiramente capaz de o concretizar; gente que entre na poderosa “máquina ministerial” e que melhore o que tiver de ser melhorado e varra o que tiver de ser varrido.
A preparação de professores deveria ser pensada de molde a oferecer níveis de excelência compatíveis com a sua importância na sociedade, oferecendo saídas profissionais adequadamente remuneradas.
É preciso pôr em prática uma rigorosa supervisão científica e pedagógica dos manuais escolares. São muitos os que se repetem acriticamente, com noções estereotipadas e, por vezes, com erros, tantas vezes denunciados.
Os professores consomem muitas horas em reuniões inúteis, mas poucas dedicadas ao trabalho lectivo que devia ser o seu principal objectivo.
A carga burocrática que se abate sobre os docentes, em planos arrevesados descritivos de metodologias e estratégias, “adaptações” de critérios de avaliação e obrigatoriedade de justificações que se traduzem em inflação de classificações para obter sucesso estatístico.
Impõe-se a necessária dignificação dos professores e educadores, num conjunto de acções, envolvendo salários compatíveis com a sua relevância na sociedade, colocações, libertação de todas as tarefas que não sejam as de ensinar e outras postas em evidência nas suas reivindicações.
O pessoal não docente representa um conjunto de elementos fundamental no universo do ensino, pelo que é forçoso dar-lhes um tratamento, em termos de dignidade e de salários, a condizer.
Repetindo o que sempre disse: considero os professores, incluindo os outros educadores, entre os mais importantes pilares da sociedade e volto a afirmar que é necessário e urgente conferir-lhes o estatuto, a atenção e a dignidade compatível com essa importância.
Nos dias que correm, receio que, uma vez alcançado o acordo com o ministério da tutela sobre a recuperação do tempo de serviço – volto a dizer: receio – que, por um lado, uma parte muito considerável da enorme massa humana que se manifestou nas ruas do Portugal inteiro se sinta confortavelmente satisfeita e desinteressada da parte mais importante do problema; e que deixe para a outra parte a continuação da luta por uma Escola Pública a sério
Receio, ainda, que o Ministério da Educação, Ciência e Inovação se sinta desobrigado de atender às restantes reivindicações, as mais sérias e profundas, as que visam uma completa remodelação deste importante pilar da sociedade que se deseja melhorar.
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Nota da Redacção:
O presente artigo de António Galopim de Carvalho complementa o texto “A Escola Pública: 50 anos depois da liberdade em democracia”, publicado na edição anterior (em 18/07/2024) do jornal sinalAberto.
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22/07/2024