Cabe-nos escolher entre “ser mestres ou escravos”
Inicio esta crónica dando espaço à notícia de que o Ministério da Educação, Ciência e Inovação não vai alargar o projecto-piloto dos manuais digitais a mais turmas do 1.º ciclo e do ensino secundário, embora mantenha o dito projecto-piloto “nos mesmos moldes para turmas dos 2.º e 3.º ciclos do ensino básico”, na intenção de avaliar o seu impacto na aprendizagem dos alunos. É compreensível a cautela dos governantes quanto às vantagens destas ferramentas de informação e comunicação, num país com evidente assimetria entre as regiões.
O mote está lançado para pensarmos nos méritos e nos insucessos pedagógicos e, sobretudo, nas decisões políticas que (apesar de os estudantes estarem “a chumbar menos”) se reflectem no insucesso escolar que ainda atinge, particularmente, os alunos mais carenciados e as “escolas de contextos mais desfavorecidos”, como nos indica o relatório “Resultados Escolares: Sucesso e Equidade”, recentemente divulgado.
Conquanto o aludido relatório da Direcção-Geral de Estatísticas da Educação e Ciência nos informe que “houve menos retenções” e também menos abandono escolar em todos os níveis de ensino, entre os anos lectivos de 2017/18 e de 2021/22, certamente, uma análise rigorosa dos dados subjacentes a esta constatação permitir-nos-á mais do que uma noção geral do que se tem passado neste domínio. Pois, durante décadas, vimos um sistema que se recusava ouvir, parecendo não querer desenvolver talentos nem se mostrar interessado em estabelecer laços de confiança com os professores, com os pais e com as próprias comunidades escolares, cada uma com as suas circunstâncias e vivências.
É, de facto, indispensável observar o insucesso escolar como uma problemática séria e de soluções inadiáveis, rejeitando os sucessivos experimentalismos e as rajadas de “eduquês” e dos ventos de uma pseudo-pedagogia que nos têm fustigado e desnorteado.
A respeito do assunto que justifica esta crónica, lembro que já o executivo liderado por António Costa tinha ponderado seguir o exemplo dos países do Norte da Europa, que recuperam os livros de papel e refreiam o recurso aos manuais escolares digitais, indagando sobre os respectivos benefícios para os estudantes. Em Setembro de 2023, foi amplamente noticiado que, por exemplo, a Suécia, a Noruega e a Dinamarca tinham analisado “as competências dos alunos que usam em excesso o digital na aprendizagem” e que “as conclusões obrigaram a um passo atrás e ao regresso dos livros em papel”.
Em Maio deste ano, num dos seus artigos de divulgação científica, o docente universitário Fernando Boavida Fernandes alerta: “Quando vivemos para as TIC [tecnologias da informação e comunicação] e quando são as tecnologias que ditam o que fazemos, privando-nos do contacto com os nossos semelhantes, impedindo-nos de ver e de desfrutar a vida e o Mundo, deixamos de ser o mestre que usa a ferramenta e passamos a ser o escravo que faz aquilo que lhe permitem.”
Nesse sentido, o professor do Departamento de Engenharia Informática da Universidade de Coimbra adianta que a opção que tomarmos marca o nosso destino individual e colectivo. Assim, é preciso querermos “ser livres para decidir o que fazer e como fazer” ou, pelo contrário, para “abdicar da privacidade e do livre-arbítrio”. Como adverte Fernando Boavida Fernandes, as situações são, sem dúvida, diferentes quando queremos controlar ou quando somos controlados. Cabe-nos escolher entre “ser mestres ou escravos”.
.
………………………….
.
Nota:
A presente crónica foi publicada na edição de 11 de Agosto (domingo) do Diário de Coimbra, no âmbito da rubrica “Da Raiz e do Espanto”.
.
15/08/2024