“Comigo, era sempre na primeira take”
XXX Festival Caminhos do Cinema Português (2)
Fico me questionando: “Quem sou eu para falar do trabalho de Luís Miguel Cintra?” Mas, isso realmente importa? (Ainda mais considerando que sou um espectador fantasma). De certa forma, há, justamente, uma provocação circunscrita neste mesmo pensamento: “Quem, um dia, será alguém para comentar devidamente a obra e a pessoa de Luís Miguel Cintra?”
É difícil, por demais, conseguir captar a única essência de uma alma tão inquieta e vanguardista quanto a dele. No entanto, foi interessante perceber, em dois eventos que contavam com a sua presença – a sessão de warm up “Verdade ou consequência?”, juntamente com a realizadora Sofia Marques, e a cerimónia de abertura do XXX Festival Caminhos do Cinema Português –, que pude ter a honra de conhecê-lo um pouco mais, não de forma usual, aproximando-me diretamente de sua pessoa, mas numa perspectiva mais comedida e observante – a mirada fantasma. Nem por isso, por conta dessa distância, creio não ter sido uma abordagem pouco emocionante, pois encontrei nele uma estimulante fábrica de boas citações e de frases de efeito que reforçam o seu caráter forte e autêntico, ao mesmo tempo que há humor e inteligência nos seus comentários, e uma docilidade no trato com os mais queridos.
A emoção gerada em mim ao assistir ao filme na sua presença é algo sem igual. Sinto que, a partir do relato de Sofia Marques, comecei a compreender as “nuances” da sua sensibilidade e militância como obreiro no teatro, no cinema e na sua vida pública. “Estou à procura do Luís Miguel que conheci’, dizia Sofia Marques a Luís Miguel Cintra, logo no começo do filme. “Verdade ou consequência?” aproveitou o período de pandemia para adentrar na casa de Luís Miguel e para fazer uma investigação íntima na sua vida criativa no teatro e no cinema, considerando sua atual conjectura, com a doença de Parkinson e o seu eventual afastamento das artes cénicas.
Na longa-metragem, conseguimos ter acesso a um Luís Miguel de feitio forte, porém sensível e amoroso, nostálgico de suas façanhas mundo afora. Assim, na conversa pós-filme, Sofia Marques comenta quanta afeição e carinho foram ali postos, por conta da sua amizade: “Eu também quis tirar um pouco o mito de que ele é intocável, inacessível e que tem feitio difícil. No fundo, não é nada disso. Desde o Teatro da Cornucópia, ter de deixar de atuar como encenador foi um golpe.”
E logo recebeu uma intervenção de Luís Miguel: “Ela deu uma doçura ao meu ambiente e ao meu trato com as pessoas que viviam comigo. Estava a viver uma violência terrível com o fim da atividade teatral. O filme não faz uma crónica do meu histórico no teatro, é uma outra perspectiva. Há outras pessoas que nunca viram isso. Sou uma pessoa que medita sobre tudo, sobre a vida, sobre o teatro.”
Um homem, um ator, um encenador, agora um pensador. Durante o filme, um detalhe que chama atenção é a respiração de Luís Miguel durante toda a duração do filme. O seu respirar forte está sempre lá, demarcando ritmos e demonstrando esforço para seguir adiante, fazendo o seu ofício: vivendo através da arte. Ao mesmo tempo, este é um filme em que vemos santos por todos os lados, signos que dão valor a esta divindade de nosso panteão artístico. Seria ele um santo que respira, um santo de carne e osso?
Quando um jovem ator o indaga sobre Manoel de Oliveira, em busca de material para a sua construção de uma personagem, o seu semblante muda e parece adquirir certa “expertise” – “Como o Manoel é um realizador único no mundo?”:
“Ele não seguia receitas. Fazia uma descoberta para cada novo filme. Sempre me questiono: e o Manoel, o que pensaria disto? Ele tinha fidelidade à sua própria pessoa. Manoel de Oliveira não fazia um cinema de sucesso comercial porque ele fazia o filme dele, tal qual ele queria que fosse o filme.”
E, sem querer, Luís acaba justificando também a sua própria postura como artista, pois, pela sua fala, a liberdade do criador demanda personalidade para assumir a sua arte, o seu lugar no mundo. Lugar no mundo que, para ele, é difícil de determinar: “Madrid é uma cidade alheia, sendo minha, uma coisa estranha e conhecida”, já o Porto “é um coração, com o Douro sendo as suas veias”, são frases marcantes que demonstram a sua maior proximidade e afeto com o povo português e os seus anseios de conhecer melhor sua terra natal, a Espanha. Mas, a sua identidade não é desvalorizada por conta da incerteza geográfica. Pelo contrário, só agrega mais complexidade a esta figura importante: “Não há dois Luíses Miguéis. Há um Luís Miguel que tem partes muito contraditórias. As personagens não são unívocas, mas antagónicas, abstratas e sistemáticas”, diz Luís Miguel, após a sessão, quando perguntando sobre as suas mil facetas.
“Tive a percepção de que [o filme] era uma das duas coisas: é um sonho com uma linguagem do inconsciente ou é uma fábula com um senhor que está a recordar e a divulgar as problemáticas do que está a fazer no mundo, que ajuda a criar explicações sobre como levar a vida. Um sonho ou uma fabula poética”, expressa Luís Miguel Cintra.
Um senhor, no meio da plateia, pergunta se Manoel de Oliveira cobrava-lhe muitas tomadas. Sem titubear, de maneira objetiva, com a sua voz de locutor quase sobrenatural, Luís responde: “Comigo era sempre a primeira take. Senão, dizia para eles irem ajeitando as coisas que eu iria tomando um café. E, depois, que me chamassem, quando estivesse tudo pronto!” Impressionante a sua vitalidade. Vivendo um sonho ou uma fábula, uma coisa é certa: Luís Miguel Cintra é lírica ambulante, talvez até involuntariamente.
No outro dia (sábado, 16 de novembro), a cerimónia de abertura do Festival Caminhos do Cinema Português (FCCP) também teve a honra de sua presença. O coordenador-geral do FCCP e mestre de cerimónias da noite, Tiago Santos, convocou o Koletivo K para prestar tributo ao homenageado da noite, com uma “performance” especial. E logo chamou Isabel Ruth1, idónea atriz e a homenageada do ano anterior, para lhe entregar o Prémio Ethos. “Luís Miguel, faz de conta que estamos só nós dois aqui”, dizia Isabel, emocionada pela tarefa de entregar a condecoração ao seu amigo de longa data.
Um reencontro emocionante para o público ali presente. “A Isabel, para mim, é o ideal da atriz de cinema. Para saber como fazer cinema tinha de olhar a Isabel”, afirmava Luís Miguel, em tom de agradecimento e de comprovação dos talentos de Isabel Ruth. “Eu quero mesmo é que o público português seja feliz!”, dizia a reprodução da sua voz a meio da bonita homenagem feita pelo Koletivo K, que não passou despercebida pelo olhar apurado e criterioso do homenageado, a fazer comentários aos “performers” para um refinamento da sua tarefa. “Não se metam aonde não foram chamados”, em tom cómico, indicando caminhos para os mais jovens buscarem rigor técnico, algumas das razões pelas quais o ator e encenador de origem espanhola adquiriu grande fama no teatro europeu. Dessa forma, contrariou a sua própria afirmação melancólica de que a sua carreira havia claramente acabado, pois este é um Luís Miguel que não descansa e que, apesar das dores e das limitações físicas, tem a mente afiada e aproveita cada oportunidade para fazer o que mais ama, mesmo que de maneira extraoficial.
Luís Miguel Cintra tem a sua vida artística e pública entregue às artes cénicas. E, até hoje, parece não se importar tanto com as causas e as consequências da sua presença. Ele considera-se um agente leal das artes, honrando-as e dignificando-as, além de quaisquer questões egóicas: uma lealdade cega. O filme de Sofia Marques questiona-nos acerca do nosso olhar sobre Miguel: o que sabemos dele é uma verdade ou uma consequência do que conseguiu ser captado pela câmara? Mas temo que a pergunta deveria ser outra: qual seria a consequência de conhecer a verdade sobre Luís Miguel Cintra? Não seria se apaixonar pela sua linda obra?
Confesso que, após estas belas noites do Festival Caminhos do Cinema Português, só tenho uma grande certeza: a verdade é que escolhi a consequência, pois eu quero mesmo é o disparate de não o conhecer por completo, de assumir as suas diversas contradições. Eu quero mesmo é ter acesso às pinceladas das mil faces dele, conhecer um pouco de cada Luís Miguel criado por ele e espalhados pelo mundo. Não há como encerrá-lo em apenas uma verdade. Luís Miguel Cintra é múltiplo e é isso o que faz dele tão especial.
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Nota da Redacção:
1 – Na edição de 11 de Novembro de 2024, o sinalAberto publicou o artigo “O doce perfume de Isabel Ruth”, da autoria do jornalista Soares Novais, sobre o lançamento do álbum discográfico “Português Suave”, com canções escritas e compostas por esta “figura singular do cinema português e europeu”.
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18/11/2024