Francisco

Papa Francisco (Créditos fotográficos: VATICAN MEDIA Divisione Foto – vaticannews.va)
Sim, assim. Sem mais nomes nem apelidos, apenas Francisco!
Seria muito redutor considerar que Francisco foi um Papa reformista e/ou revolucionário. Ele seguiu o seu caminho com uma consequência que já o havia distinguido na sua cidade natal de Buenos Aires. Filho de imigrantes italianos, Francisco soube assimilar a cultura europeia herdada e misturá-la com as suas raízes buenairenses ou portenhas, onde não podia faltar o futebol, o tango e também, como se conta, um romance de juventude… Tudo isto humanamente vivido junto dos pobres da sua terra e enfrentando, dentro do possível, a ditadura militar argentina (de 1976 a 1983), uma das mais sangrentas e repressivas da América Latina.

(pt.vikidia.org)
Todo este sofrimento vivido pelos seus contemporâneos forjou a estatura de um homem que será difícil de esquecer e que veio para a Igreja Católica na sua medida, como no Evangelho… “Eu vim trazer fogo à terra, e como desejaria que já estivesse aceso!” (Lucas 42: 49-53) Sem ser incendiário!
Adoptou o nome de Francisco, fiel a um ideário, que se identificava com o fundador de uma das ordens mendicantes, Francisco de Assis (1181 ou 1982-1226), o filho de um rico comerciante que renunciou a toda riqueza e luxo, transformando-se na expressão do poeta Dante Alighieri numa “luz que brilhou sobre o mundo”.
Quero lembrar, aqui, alguns momentos marcantes do seu pontificado de 12 anos.
A viagem à ilha de Lampedusa (na Itália) e a santa missa celebrada pelas vítimas dos naufrágios. Na homilia, no campo desportivo “Arena”, na localidade de Salina, a 8 de Julho de 2013 (uma segunda-feira), Francisco recuperava a figura do “Inominado”, de Alexandre Manzoni1: “A globalização da indiferença torna-nos a todos ‘inominados’, responsáveis sem nome nem rosto.”

Em 2013, numa das suas primeiras declarações, o Papa afirmou que as pessoas gays não devem ser marginalizadas, mas integradas na sociedade.
No ano de 2014, o Papa Francisco fez a primeira viagem à Terra Santa e convidou os líderes de Israel e da Palestina para uma oração no Vaticano. O encontro histórico, com o objetivo de promover a paz no Médio Oriente, ocorre no mês seguinte.
Em 2015, Francisco faz um dos seus discursos mais políticos, ao defender uma “mudança da estrutura” mundial, reconhecendo que o capitalismo é uma “ditadura subtil” e que os movimentos sociais devem actuar para a união entre os povos e para a preservação do ambiente.

Ainda nesse ano (de 19 a 27 de Setembro de 2015), Francisco vai a Cuba e aos Estados Unidos da América (EUA), considerados rivais históricos. Os líderes desses dois países iniciam abertura nas relações bilaterais, com mediação do próprio pontífice.
Três anos depois, em 26 de Agosto de 2018, na Irlanda, Francisco “implora o perdão do Senhor” pelas agressões sexuais cometidas por padres católicos nesse país.
A 3 de Novembro de 2022, o Vaticano anuncia uma mudança na doutrina da Igreja feita a pedido de Francisco, passando a considerar a pena de morte inadmissível em todos os casos.
Em 2023, a 26 de Abril, o Papa autorizou que mulheres e leigos tenham direito a voto no sínodo ou assembleia de eclesiásticos. Essa decisão foi vista como um avanço do pontificado em direcção a uma Igreja mais aberta e plural.
Já no final do ano de 2023, a 18 de Dezembro, é tomada uma decisão histórica, porque o Vaticano passou a autorizar a bênção a casais de pessoas do mesmo sexo e àqueles considerados “em situação irregular”, expressão usada para se referir a todos os que vivem em segunda união, após um divórcio. No entanto, a instituição religiosa não altera o seu veto relativamente ao casamento homoafectivo.

Na sua visita apostólica a Portugal, por ocasião da XXXVII Jornada Mundial da Juventude (JMJ), entre 2 e 6 de Agosto de 2023, na cidade de Lisboa, o Papa Francisco declarou em voz alta para todos ouvirem: “Uma Igreja para todos, todos, todos.”
No ano de 2024, a 27 de Setembro, o Papa afirma que a Igreja Católica deve pedir perdão por abusos sexuais a menores de idade.
A 20 de Novembro do ano transacto, Francisco aprova a resolução que simplifica os funerais papais. Ou seja, o texto retira a obrigação de que os pontífices sejam enterrados em três caixões sofisticados e interligados, feitos de cipreste, chumbo e carvalho. Por conseguinte, o Papa Francisco pediu para ser sepultado num caixão simples de madeira revestido de zinco.
Já no corrente ano (de 2025), a 11 de Fevereiro, o Papa condenou as medidas contra os migrantes que o presidente dos EUA, Donald Trump, pretende empreender, segundo expressou numa incomum carta aberta enviada aos bispos católicos norte-americanos. Para o pontífice, as deportações ferem a dignidade dos migrantes e vão acabar mal.
Igualmente neste ano, no Domingo de Páscoa, convalescente e com a voz quebrada, Francisco teve forças para pedir a Paz na Faixa de Gaza, em defesa do povo palestiniano!2

Fiel e consequente, Francisco volta à carta encíclica “Laudato Si”, publicada em 2015, pretendendo entrar em diálogo com todos acerca da “nossa casa comum”. Assim, quando cita o santo de Assis, logo no início da sua missiva (“Laudato Si”): “[…] mi’ Signore – ‘Louvado sejas, meu Senhor’, cantava São Francisco de Assis. Neste gracioso cântico, recordava-nos que a nossa casa comum se pode comparar ora a uma irmã, com quem partilhamos a existência, ora a uma boa mãe, que nos acolhe nos seus braços: ‘Louvado sejas, meu Senhor, pela nossa irmã, a mãe terra, que nos sustenta e governa e produz variados frutos com flores coloridas e verduras’.”3
O Papa que veio do fim do Mundo, tão próximo de mim geograficamente (pois, nasci no Chile), veio para ficar. Foi o Papa que a Igreja precisava num momento tão especial como este que vivemos, de guerras, de intolerâncias e do ressurgimento de novos muros e regimes totalitários.

Lembro-me da morte do Papa João XXIII (Angelo Giuseppe Roncalli, 1881- 1963), igualmente franciscano. E também não me esqueço do sentimento de orfandade que ficou na minha avó materna, que ainda recordava o badalar dos sinos da catedral de Concepción, passado poucos anos do sismo que abalou a minha cidade. Era 27 de Junho de 2015 e entrávamos no Inverno!
Francisco deixa uma enorme legião de órfãos, que reencontraram nele uma Igreja aberta e inclusiva, tarefa difícil de continuar para um novo Papa e para uma Igreja que não pode ser apenas para alguns, alguns, alguns…
A igreja de Santa Maria Maior de Roma é próxima dos pobres e dos imigrantes. Aí, descansará Francisco, sob uma lápide em que, apenas, constará uma simples inscrição: FRANCISCUS.
Gabriel García Márquez, no seu livro “Doce Cuentos Peregrinos”, relata a história de Margarito Duarte, que viaja até Roma, transportando o corpo incorrupto da sua filha que morrera aos sete anos de idade. O corpo fora desenterrado do cemitério, para a construção de uma represa, e – leve, sem peso e incorrupto – conservava sinais corpóreos incorruptos, como se estivesse viva. A aldeia (e, mais tarde, o país todo) pede para a levar à Santa Sé, para que seja considerada uma santa. Os obstáculos em Roma são imensos. Os funcionários do Vaticano respondem-lhe que, só no ano anterior, receberam “oitocentas cartas de pessoas solicitando a santificação de cadáveres intactos em diferentes partes do mundo”.

Margarito Duarte esperou mais de 22 anos para ser recebido por um Papa, na expectativa da possível beatificação da sua filha. Velho e cansado, viu passar pela Sé de Roma cinco pontífices, mas a sua fé não desapareceu…
Garcia Marques remata o seu conto assim: “A esperança e a fé de Margarito chegaram ao coração de quem conta esta história neste livro, que conclui que, o santo era Margarito. Não havia mais dúvidas. Sem perceber, através do corpo incorrupto da filha, ele já lutava há vinte e dois anos de vida pela causa legítima da sua própria canonização.”
Para finalizar este artigo, aqui entre nós, resta-me comentar que Rui Moreira, presidente da Câmara Municipal do Porto – mais propriamente a Assembleia Municipal do Porto, através de um voto de protesto – acusou a diocese do Porto de querer impedir o direito de preferência da edilidade portuense na alienação de imóveis no bairro das Eirinhas e em Miragaia, comportando-se como um agente imobiliário privado e impedindo os moradores de continuarem nas suas casas.
.
Notas:
1 – Alessandro Francesco Tommaso Manzoni (1785-1873), poeta, romancista e filósofo italiano, é considerado um dos maiores romancistas italianos de todos os tempos.
2 – Relembre os factos marcantes da história do Papa Francisco.
3 – Cantico delle creature: Fonti Francescane, 263.
4 – “Doce cuentos peregrinos” é uma colectânea de 12 relatos escritos por Gabriel García Márquez durante 18 anos, tendo esta obra sido publicada em 1992.
.
………………………….
.
Nota do Director:
O jornal sinalAberto, embora assuma a responsabilidade de emitir opinião própria, de acordo com o respectivo Estatuto Editorial, ao pretender também assegurar a possibilidade de expressão e o confronto de diversas correntes de opinião, declina qualquer responsabilidade editorial pelo conteúdo dos seus artigos de autor.
.
01/05/2025