Paz

 Paz

Marjan Blan (Unsplash)

Não é difícil estar em desacordo com Miguel de Sousa Tavares (MST) sobre inúmeros assuntos e este, que diz respeito à invasão da Ucrânia pelas tropas russas, podia não ser excepção: mas é (o seu artigo coincide em muito com o que escrevi no dia 8 de Março, no sinalAberto). MST refere-se à coragem de procurar obter a Paz. Em tempos sombrios como os de hoje – que, em rigor, vêm sendo ensombrados desde a Segunda Guerra Mundial, tanto pela extinta União Soviética (com a queda, travessia do deserto e ressurgimento da Rússia) como pelo eixo militar da NATO, além da aparente indolência do grande gigante asiático e do fundamentalismo islâmico –, parece-me não só indecoroso não procurar a via da pacificação e da diplomacia, como indecente a alimentação de patriotismos do século XIX, à custa do sacrifício de inúmeras vidas (ucranianas e russas), de famílias e de gerações de apátridas.

José Pablo Domínguez (Unsplash)

Só se pode estranhar o comportamento do Papa Francisco em ter apelado à paz, sem, de igual modo, haver condenado a inqualificável invasão terrorista do agressor russo e a resistência armada do regime ucraniano. Tendo tornado explícita a condenação de Vladimir Putin – com que qualquer pessoa razoável acorda –, pecou por defeito e, não sei se deliberadamente, amparou a política de impiedoso sacrifício de Volodymyr Zelensky, que não está já longe de ter perpetrado, também ele, crimes de guerra. Deveria ter, aliás, reforçado uma ideia de uma Europa de não-alinhados, uma Europa forte por estar desarmada. Tendo evidenciado escolher um lado, o Papa Francisco sugere a incompreensão do episódio do julgamento de Salomão (Reis, 3:16-28): quando Salomão pediu a espada que dividiria o filho reivindicado pelas duas mulheres, uma delas (a verdadeira mãe) preferiu dá-lo vivo à outra mulher a vê-lo esquartejado. O amor dessa mãe, que por nenhuma espécie de honra sacrificaria um filho, está nos antípodas da atitude do presidente Zelensky, um homem disposto a sacrificar pessoas (filhos, mães, pais, avós) pelo abstracto instinto de pátria – caso para perguntar se ele ama os seus filhos como nós julgamos amar os nossos. Se houver um tempo em que haja que julgar os responsáveis por crimes contra a humanidade, para além de Putin, é necessário que Joe Biden, Jens Stoltenberg (secretário-geral da Organização do Tratado do Atlântico Norte ou NATO) e Zelensky sejam aditados à lista – como também convém reservar um mocho à senhora Ursula Gertrud von der Leyen (actual presidente da Comissão Europeia) e a vários outros presidentes e ministros da União Europeia. O Papa Francisco, pela sua grave omissão, não ficará isento de censura e, com dificuldade, há-de livrar desta mancha o seu pontificado. Quando falamos de Paz, não podemos ter meios-termos nem contemplações. A Paz não é um objectivo que configure equações dúbias. E, para que sejamos claros, convém não ter medo das palavras: a NATO, porque potenciadora de acções armadas de defesa e ataque, com recurso a armas letais de dimensão avassaladora, é uma organização terrorista legitimada e acoitada pelas democracias ocidentais e pelo interesse dos países que a constituem. Para ser exacto, a NATO é a única organização internacional validada pela Organização das Nações Unidas (ONU) que colide com o supremo interesse da Paz mundial. Porém, como se sabe, a intelligentsia neoliberal tem obtido um efeito de suavização geral das maneiras, no interior de um enquadramento mental fixo e de um autoritarismo unanimista assustador, semelhante ao totalitarismo. Vivemos em regimes democráticos altamente musculados e vigiados e MST sabe-o. Sabe-o e referiu a dificuldade sentida em não enfileirar na linha de pensamento oficial, a mesma que censurou generais em Portugal, alegadamente russófilos. A mesma que censura Fiódor Dostoiévski em Itália e boicota artistas e atletas russos. O Ocidente só leu de Orwell aquilo que lhe interessou.

Kedar Gadge (Unsplash)

Quando falamos da legítima defesa da soberania dos povos, pode invocar-se homens como Martin Luther King, Mahatma Gandhi ou Nelson Mandela, que encaramos com admiração e afeição justamente por terem abdicado da violência, em favor de uma resistência pacífica. Tem de se admitir que o presidente da Ucrânia tem falado ao Mundo sob o apoio controlado vindo do exterior. É fácil adular verbalmente a ortodoxia do momento, mas as acções com alguma consequência só podem ser produzidas quando um homem sente a verdade do que está a dizer. Custa-me acreditar que alguém como Zelensky creia num patriotismo sem país ou numa pátria sem pessoas, manchada de sangue e caos. A violência a que responde à agressão russa não procura a paz. É perversa e, por isso mesmo, impotente. Quando alguém nos pergunta se se deve entregar um país ao jugo de outro, a resposta deve e tem de ser corajosa: a alternativa é não haver país. No caso de Zelensky, que se arroga concentrar na sua pessoa a escolha entre liberdade e tirania e a defesa da civilização ocidental, o que há a esperar de si não é a traição a um povo, pela sua eliminação e deslocalização, mas a estupidez. Combater a violência com violência é quase certo que acaba numa derrota total.

Marjan Blan (Unsplash)

Não é verdade que o Ocidente tenha evitado a escalada da guerra. O Ocidente alimenta-a (e até vive dela) e edifica um país que poderá ficar reduzido a escombros. A rendição da Ucrânia nos dois ou três primeiros dias teria evitado o circo das organizações não-governamentais (ONG), das ajudas humanitárias, dos concertos solidários, da propaganda afectiva, da russofobia concertada e acéfala, do mercenarismo duvidoso, das mortes injustificadas, do desespero e da tragédia humana; e de algum espectáculo indigente da comunicação social. A Ucrânia teria tido uma oportunidade de desgaste do regime imposto por Moscovo, por via de uma resistência social e política determinada e prolongada, mas sem o preço a que assistimos. Só que o Ocidente não a permitiu.

Miguel Sousa Tavares tem razão: a Paz, além de um acto de coragem, é um verdadeiro exercício de inteligência. Mas a falta de pensamento e a reverência pelos uniformes falou mais alto. A Paz não é um desígnio ingénuo. Parece, mas não é. Não, não são fantasias de virgem.

21/03/2022

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António Jacinto Pascoal

António Jacinto Pascoal (nasceu no ano de 1967, em Coimbra) é mestre em Literaturas e Culturas Africanas de Língua Portuguesa, especializando-se nas obras poéticas de Nicolás Guillén e José Craveirinha. Estreou-se, em 1991, com «Pátria ou Amor» (Prémio da Associação Académica de Coimbra, prefaciado por Agustina Bessa-Luís). Ensaísta, poeta e contista, surge editado em variadíssimas antologias poéticas, é prefaciador de antologias e autores diversos, e traduziu a obra poética da chilena Violeta Parra. Publicou «Os Dias Reunidos» (1998), «A Contratempo» (2000), «Terceiro Livro» (2003), «No Meio do Mundo» (2005), «As Palavras da Tribo» (2005), «Cello Concerto» (2006), «Pátria ou Amor» (2011) e «As Sete Últimas Palavras» (2017), bem como «Mover-se o Fogo» (2018). Poemas seus estão traduzidos em Inglês e em Finlandês. Em 2018, editou o álbum fotográfico «Banda Euterpe de Portalegre – A Visão do Som». O conto «Os Joelhos do meu Pai» foi primeiramente editado na antologia «Contos da Língua Toda» (em 2018).

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