Rosários da Roseira ou roseiras do Rosário?

 Rosários da Roseira ou roseiras do Rosário?

(sns.gov.pt)

Quosque tamden, ‘Cabotina’, abutere patientia nostra?1 Leio, já sem espanto, um artigo de Maria de Belém Roseira (ou Rosário da nossa vil tristeza?), no Observador, que é absolutamente lapidar da estupidez de um sistema em que a economia não é um instrumento ao serviço da Pessoa Humana, mas um abstracto desígnio, a que a Pessoa Humana deve obedecer. Já nem se trata do modelo económico capitalista, mas da pura aberração do chamado neoliberalismo, contaminando até quem se diz militante de uma causa socialista, conforme o nome do partido onde milita. Mais valera militar (bem, depende: se for o almirante Melo, se calhar é preferível esta Roseira) num partido personalista, democrata-cristão de facto, mas não só de nome. Não creio que Aldo Moro escrevesse tão desmesurada “alarvidade”. O tempora, o mores!2

Maria de Belém Roseira (facebook.com)

Diz a articulista, logo na abertura, este despropósito: “[…] cabe ao Estado assegurar o acesso dos cidadãos ao SNS [Serviço Nacional de Saúde] e a cada um promover a sua saúde para combater a principal causa de morte em Portugal, que representa 2% do PIB da União Europeia.” A antiga, muito antiga, ministra da saúde, está a referir-se aos acidentes vasculares; e o sublinhado é nosso.

Imagino a senhora numa ambulância a caminho das urgências de um hospital, vítima de um acidente vascular cerebral (por exemplo), a tentar fazer contas de quanto vai custar ao produto interno bruto da União Europeia (UE) o seu tratamento e/ou morte. Em vez de uma máscara de oxigénio no rosto, terá uma máquina de calcular na mão; e, provavelmente, se ficar viva e a lesão tiver sido extensa, em vez de ficar com a boca torta, fica com os algarismos deficientes.

(Créditos fotográficos: Marek Studzinski – Unsplash)

Mas, seguindo o raciocínio (?) da articulista, pergunto-me: não serão mais caros o comércio e a indústria da morte? É que se funerais, cemitérios, trasladações, crematórios, jazigos, flores, licenças de luto, gasolina gasta nos automóveis do cortejo fúnebre, velas, missas (se o morto for crente), remoção de ossadas, anúncios nos jornais e demais serviços associados (incluindo a oferta da Servilusa para fazer do corpo um “diamante” para trazer ao peito de quem fica vivo, literalmente e não paráfrase) não representarão 2,1% do PIB da União Europeia? E, se sim, que tal decretar a proibição de morrer no Espaço Schengen ou na Zona Euro? Ou mesmo nos países candidatos, como é o caso da Ucrânia, para onde os muito por cento de armamento de guerra não representarão qualquer importância no percentual do PIB da União Europeia?

Roseiras destas, cheias de espinhos, também se deviam autoproibir de papaguear absurdos. Nem Samuel Beckett teria escrito melhor!

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Notas da Redacção:

1 – A tradução exacta da frase, nas “Catilinárias” (em Latim: In Catilinam Orationes Quattuor), uma série de quatro discursos célebres de Marco Túlio Cícero (80 a. C.- 43 a. C.), é: “Até quando, ‘Cabotina’, continuarás a abusar da nossa paciência?” Aqui, o nome Cabotina, claro, substitui Catilina. 

2 – O equivalente a “Ó tempos, ó maneiras!” ou “Ó tempos, ó costumes!”

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Nota do Director:

O jornal sinalAberto, embora assuma a responsabilidade de emitir opinião própria, de acordo com o respectivo Estatuto Editorial, ao pretender também assegurar a possibilidade de expressão e o confronto de diversas correntes de opinião, declina qualquer responsabilidade editorial pelo conteúdo dos seus artigos de autor.

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17/06/2024

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Jorge Castro Guedes

Com a actividade profissional essencialmente centrada no teatro, ao longo de mais de 50 anos – tendo dirigido mais de mil intérpretes em mais de cem encenações –, repartiu a sua intervenção, profissional e social, por outros mundos: da publicidade à escrita de artigos de opinião, curioso do Ser(-se) Humano com a capacidade de se espantar como em criança. Se, outrora, se deixou tentar pela miragem de indicar caminhos, na maturidade, que só se conquista em idade avançada, o seu desejo restringe-se a partilhar espírito, coração e palavras. Pessimista por cepticismo, cínico interior em relação às suas convicções, mesmo assim, esforça-se por acreditar que a Humanidade sobreviverá enquanto razão de encontro fraterno e bom. Mesmo que possa verificar que as distopias vencem as utopias, recusa-se a deixar que o matem por dentro e que o calem para fora; mesmo que dela só fique o imaginário. Os heróis que viu em menino, por mais longe que esteja desses ideais e ilusões que, noutras partes, se transformaram em pesadelos, impõem-lhe um dever ético, a que chama “serviços mínimos”. Nasceu no Porto em 1954, tem vivido espalhado pelo Mundo: umas vezes “residencialmente”, outras “em viagem”. Tem convicções arreigadas, mas não é dogmático. Porém, se tiver de escolher, no plano das ideias, recusa mais depressa os “pragma” de justificação para a amoralidade do egoísmo e da indiferença do que os “dogma” de bússola ética.

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