África minha
Em 2017, o secretário-geral da ONU mostrou-se “horrorizado” face à suspeita de venda, na Líbia, de subsaarianos como escravos, por 400 dólares. Atualmente, segundo dados da Fundação Walk Free e da Organização Internacional do Trabalho das Nações Unidas, perto de 40 milhões de pessoas são escravizadas, em condições muito idênticas às daqueles que também o foram nas épocas dos homens cujas estátuas e monumentos são hoje objeto de contestação. Até onde os atuais protestos são um grito de revolta para com as injustiças contemporâneas?
Quando a 5 de fevereiro de 2003 o secretário de Estado norte-americano, Colin Powell, anunciou no Conselho de Segurança da ONU o início da guerra contra o Iraque, fê-lo diante da tapeçaria “Guernica”, pudicamente tapada por um pano azul. A obra emblemática de Picasso — uma das mais fortes denúncias à crueldade da guerra, concretamente sobre a barbaridade do ataque aéreo alemão que destruiu por completo a pequena localidade basca e matou 1.600 civis durante a guerra civil espanhola —, assistia com todos os seus sentidos simbolicamente tapados, à comunicação pública e oficial dos bombardeamentos aéreos contra Bagdad. Naquele instante e naquele preciso local coexistiam a crítica à guerra e aos seus efeitos, e o anúncio efusivo de um bombardeamento bem sucedido. Duas narrativas sobre a guerra, sobre a história, e duas formas diversas de entender a natureza humana.
É sabido: a história nunca é neutra nas narrativas que constrói na “relação entre o único e o geral”, na expressão do diplomata, historiador e jornalista de esquerda, Edward Hallett Carr, o que talvez ajude a perceber a onda de manifestações e protestos, um pouco por todo o mundo, contra as visões oficiais e dominantes da História. De resto, já em as “Falsificações da História”, Marc Ferro nos exortava para a urgência em cotejarmos as representações do passado, porquanto, sublinha ele, “os heróis de ontem são os renegados de hoje”, o que reforça a acuidade de um tema que recentemente se transformou num problema que não é possível continuar a iludir.
A perspetiva histórica dos colonizadores deve, assim, ser confrontada com a dos colonizados — a história da caça nunca estará completa enquanto apenas for escrita pelo caçador, sem ter em conta o que pensa o leão, escreveu um dia Eduardo Galeano. Ou, como no conhecido aforismo do senhor Keuner, de Bertold Brech, “do rio que tudo arrasta se diz que é violento, mas ninguém diz violentas as margens que o comprimem”.
Não havendo nada de especialmente novo em tudo isto, havia como que um magma social a borbulhar e à espera de entrar em erupção. O seu momento de fusão é o assassinato de George Floyd, em Minneapolis, no Minessotta, a 25 de maio, por um polícia que o asfixiou com o joelho depois de manietar deitado no asfalto. Das manifestações contra o racismo, sob o lema “Black lives matter”, levadas a cabo em dezenas de países, incluindo Portugal, como resposta à morte violenta de George Floyd, que as redes sociais ampliaram à saciedade, passou-se depois para o ataque e derrube de estátuas ou símbolos ligados à escravatura e ao colonialismo.
Na Bélgica intensificam-se os movimentos para retirar todas as estátuas do rei Leopoldo II, cuja ação durante os 44 anos de reinado (1865-1909) terá causado cerca de 10 milhões de mortos no Congo, antiga colónia belga. Em Londres, vários protestos levaram as autoridades a entaipar uma estátua de Churchill, ao mesmo tempo que outras imagens, como a de Cristovão Colombo, eram apeadas ou atiradas à água, como sucedeu na cidade de Richmond, na Virginia., ou até na cidade que tem o seu nome (Columbus), onde a semana passada a sua imagem de três metros em bronze foi retirada da câmara municipal.
Ainda nos Estados Unidos, a presidente da câmara dos representantes, Nancy Pelosi, defendeu a retirada de 11 estátuas de militares e dirigentes confederados, do Capitólio, com o argumento de que tais figuras celebram o “ódio, não o nosso património”. Em S. Francisco, no parque de Golden Gate o monumento ao escritor Miguel de Cervantes foi vandalizado com inscrições a tinta vermelha e a estátua do missionário franciscano, também espanhol, Junipero Serra, foi derrubada.
Mais a norte, a permanência da estátua do navegador português Gaspar Corte-Real, situada em frente ao parlamento provincial de Terra Nova e Labrador, em St. John’s, no este do Canadá, está a ser analisada pelo governo provincial local. O monumento foi doado, em 1965, por Portugal, como “agradecimento pela hospitalidade” daquela região aos pescadores portugueses. Vários grupos aborígenes em Labrador acreditam que Corte-Real, numa expedição em 1501, poderá ter escravizado 57 indígenas, enviando-os para a Europa.
Em Angola e Cabo Verde está a ser contestada a escolha do nome de Fernando Pessoa para o programa de intercâmbio estudantil entre alunos da CPLP, acusando o poeta de racista, por ter escrito que a escravatura de certos povos “é lógica e legítima”. O jornal Expresso das Ilhas, de Cabo Verde, transcreve vários fragmentos do texto, “O imperialismo de expansão tem um sentido normal”, em que Pessoa discorre sobre a normalidade e legitimidade da escravatura: “um zulu ou um landim não representa coisa alguma de útil neste mundo. Civilizá-lo, quer religiosamente, quer de outra forma qualquer, é querer-lhe dar aquilo que ele não pode ter. O legítimo é obrigá-lo, visto que não é gente, a servir os fins da civilização.”
Em Espanha, os protestos escavam mais longe. Grupos defensores dos direitos dos animais forçaram o encerramento temporário das grutas de Altamira. Sob a acusação de que “é vergonhoso que em 2020 se exibam e as pessoas se divirtam com imagens tão retrógradas que perpetuam a ideia de maus tratos nos animais”, referindo-se aos autores das pinturas rupestres que têm 30 mil anos, os ativistas pressionaram os responsáveis pelas grutas da Cantábria não apenas a encerrá-las, como a prometer que vão introduzir explicações complementares no local, a fim de contextualizarem as gravuras.
Na Dinamarca, a pequena sereia de bronze que homenageia o escritor Hans Christian Andersen, mundialmente famosos pela sua literatura para crianças, amanheceu a semana passada pintada com letras vermelhas e a frase “peixe racista” inscrita na rocha que suporta a imagem centenária junto ao porto, em Copenhaga, que é visitada por um milhão de turistas por ano, segundo dados oficiais.
Em Portugal, a vandalização da estátua do Padre António Vieira, em Lisboa, e a decapitação do busto do fundador do escutismo, Baden-Powell, em Coimbra, constituem exemplos que se inserem nesta linha geral de ações entre o protesto e o vandalismo. O ataque à imagem do jesuíta português, apesar de generalizadamente criticado, tem vindo a ser aproveitado para rediscutir o seu papel e ação no Brasil, designadamente nas relações com os índios e os escravos.
Um país com cerca de 500 anos de ligação ao colonialismo e onde até aos anos 60 do século passado houve a prática de trabalhos forçados nas suas colónias africanas, não pode passar entre os pingos da chuva nesta discussão tendencialmente global, embora internamente, à exceção de investigações académicas e alguns (ainda poucos) livros, o assunto seja ainda tabu. E como é ele visto de fora? Para o historiador moçambicano, Euclides Munhisse, “a destruição de memórias que supostamente representam a escravatura e/ou colonialismo pode ser compreendida de forma controversa, porque independentemente da remoção destas representações físicas em praças públicas, elas continuam na nossa literatura; ou seja, a ciência viva da História não é apagada por momentos turbulentos num determinado contexto, muito menos pela destruição de objetos”. O historiador e arqueólogo português Pedro Carvalho entende, por seu lado, que “não faz sentido julgar-se de forma retroativa e anacrónica a História, destruindo-se hoje as estátuas que simbolicamente a representam, em nome de uma superioridade moral atual autoproclamada, radical e intolerante.”
Carlos Fiolhais, físico e um dos nomes mais importantes na divulgação de ciência, em Portugal, traz a sua conhecida frontalidade para a discussão, assumindo, desde logo, que também protesta e que reconhece a existência, ainda, de “racismo, colonialismo e até escravatura”. Porém, considera que “a violência contra pessoas e bens (as estátuas, goste-se ou não se goste delas, são bens coletivos) já não é legítima: mais do que um abuso, é um crime. É por isso que os derrubadores de estátuas são anónimos. Podemos concerteza discutir estátuas. Eventualmente tirar umas e colocar outras. Mas a violência — criando factos consumados — impede qualquer discussão. Os derrubadores de estátuas têm as posições deles e não querem saber das nossas: não são democratas, não aceitam as regras da democracia”.
Sem pontos de fuga, porém construído na base da diversidade de olhares e saberes, o debate proposto por sinalAberto a um vasto e diversificado leque de investigadores e ativistas começou por procurar entender as razões de tanta contestação neste preciso momento. O historiador Miguel Cardina concorda que “as estátuas têm uma carga simbólica significativa”, porém, considera que o que está, sobretudo, em causa, “é uma erupção contestatária sobre o racismo no presente que — para além dos tópicos mais imediatos da condenação da violência policial ou denúncia da desigualdade — tem vindo a mostrar como estes não podem ser desligados de uma mais vasta história ancorada no colonialismo, na escravatura, na desigualdade, que muitas vezes os Estados não só não souberam rever e reenquadrar e que, demasiadas vezes, constitui ainda uma parte fundamental de representações nacionais tidas como positivas e até heroicas”.
Na mesma linha de raciocínio, o historiador Rui Bebiano entende que as manifestações e protestos em curso possuem “motivações que não são as figuras em si, mas antes o relacionamento de aspetos das suas biografias com campanhas associadas a causas diversas, como a luta contra o racismo e o esclavagismo, os combates pela tolerância religiosa, os nacionalismos, os combates dos feminismos, os direitos LGBT ou das minorias étnicas, a rejeição dos vestígios do colonialismo, entre outras. Em regra — sublinha — muitas dessas estátuas têm a marca dos valores, das crenças ou da ordem política e social dominantes na época em que foram erguidas, os quais, naturalmente, não perduram para todo o sempre. Quer isto dizer que, com frequência, elas confrontam a realidade de uma nova ordem social, ou a de novas ideias, direitos ou programas políticos”, acrescenta Rui Bebiano.
O biólogo Paulo Gama da Mota não descarta essas hipóteses, porém acrescenta ao debate as noções de discriminação e xenofobia, as quais considera que “existem em todas as sociedades humanas, porque evoluímos como seres sociais que tendem a discriminar os que pertencem a um círculo qualquer e os que não pertencem”. Assim sendo, o mesmo investigador, que pertence ao CIBIO (Centre in Biodiversity and Genetic Resources) da Universidade do Porto, explicita diferentes formas de discriminação: “na Europa pode ser a religião (anti-semitismo), língua (franceses ou alemães discriminam portugueses, ingleses discriminam polacos), ou cultura (a pertença a determinados círculos que se identificam pela ostentação de determinados símbolos culturais)”. Por outro lado, assinala que “os conflitos que envolvem grupos etno-linguísticos diferentes está muito longe de ser um problema de racismo e muito menos relacionado com a escravatura”.
Guilherme Figueiredo é pós-graduado em Antropologia Cultural, com áreas de interesse mais próximas da filosofia, e debruça-se sobre as questões epistemológicas, “teóricas e comparativas da disciplina (em oposição ao particularismo histórico-cultural)”. Para lá da academia, é também ele voz integrante e ativa de movimentos sociais e políticos.
Guilherme Figueiredo: “As afrontas às estátuas devem ser vistas, sobretudo, pela “força e autoridade que ainda exercem sobre o presente — pelo seu efeito histórico”.
Sobre o fenómeno que observamos relativamente às estátuas que têm vindo a ser alvo de episódios de vandalismo, Guilherme Figueiredo não se mostra apreensivo. Tenta, antes, enquadrar este “movimento” no momento que vivemos. Como tal, diz que “de um ponto de vista histórico não é possível desligar certos monumentos e instituições, do colonialismo e das desigualdades do qual são produto e ao qual devem a sua existência”. Em relação ao passado, acredita, há uma crescente consciencialização política e um despertar de consciência histórica. Estes dois níveis de consciência implicam um maior reconhecimento do que as estátuas vandalizadas representam, já que elas mantêm “erguidas consigo um conjunto de valores, ideais políticos e processos históricos altamente violentos”. E assim sendo, as afrontas às estátuas devem em sua opinião ser elas próprias encaradas como forma de contestação a esses mesmos ideais que a estatuária consigo mantém. Não somente pelo que representam no momento presente, e pelo que foram no passado, “mas pela força e autoridade que ainda exercem sobre o presente — pelo seu efeito histórico,” argumenta o antropólogo cultural.
Teresa Silva é psicóloga e membro integrante do grupo feminista “A Colectiva”, que assumiu um papel preponderante nos protestos que se seguiram ao “acórdão da sedução mútua” e ao “acórdão do Juiz Neto de Moura”, como ficaram conhecidos, ambos pejados de pensamento chauvinista relativamente às mulheres vítimas de violência machista.
A psicóloga considera que “é senso comum que a forma como se escolhe contar a História diz mais acerca da época histórica (e das doutrinas dominantes nessa mesma época) do que propriamente acerca dos factos históricos em si”. No entanto, a permanência destes ícones históricos no espaço público de países “onde o poder continua a pertencer a homens brancos heterossexuais” tem ela mesma uma mensagem: “há que manter, respeitar e glorificar essa herança, de forma a manter a mesma ordem hierárquica do poder”. Teresa aponta como “particularmente problemáticas” as estátuas do Cónego Melo, em Braga, e a estátua da Praça do Império no Porto (construída em 1934 expressamente para a Exposição Colonial), exatamente como “símbolos de glória a um passado colonial e/ou fascista”.
João Paulo Avelãs Nunes, historiador, assume uma atitude aparentemente mais convergente, embora sem mitigar a necessidade de o assunto ser objeto de um amplo e esclarecido debate: “enquanto historiador, procuro recolher informação, delimitar grelhas de análise e contextualizar, comparar, analisar objetos de estudo. Enquanto cidadão, penso que devemos formar opinião e intervir, tendo em conta as múltiplas leituras disponíveis, de forma a procurarmos construir sociedades melhores. Diria, assim — acrescenta o mesmo investigador que se dedica também ao estudo do património cultural — que devemos debater essas questões procurando, ao mesmo tempo, consensualizar mínimos denominadores comuns”.
O arqueólogo Pedro Carvalho insiste na importância vital em se conhecer a História para se “perceber que esta não se pode mudar, nem tão pouco se purifica ou apaga”. Donde, em sua opinião, “é preciso ler e aprender com a História, até para não regressarmos a um passado que não queremos ver repetido, como quando precisamente se derrubavam estátuas e queimavam livros. A História foi feita por homens e mulheres fruto do tempo histórico em que viveram. Nós somos por sua vez fruto dessa História comum, dessa herança cultural, e devemos assumi-la, e não escondê-la”, defende Pedro Carvalho, para quem o conhecimento contextualizado da História na “sua complexa dimensão” será “provavelmente desconhecido” por parte de muitos dos que hoje vandalizam ou destroem monumentos.
Como lidar, então, com o problema? Na Roma Antiga dir-se-á que as coisas eram mais simples e práticas. As cabeças das estátuas eram amovíveis, o que permitia a sua substituição de forma fácil, rápida e até muito económica, visto que se aproveitava tudo dos ombros para baixo. Mas hoje, perante um certo extremar de posições — ainda localizado, é certo, mas agora com a pressão enorme e permanente das redes sociais — qual o comportamento ao mesmo tempo mais esclarecido, pedagógico e cívico a seguir?
Carlos Fiolhais, embora recusando qualquer tentativa de reescrita da história, admite que “a sociedade muda e tem maneiras de mudar a sua paisagem urbana”. No seu caso pessoal, no entanto, desgosta-o mais o simbolismo do monumento que a sua estética. Mas “também não gosto de ver pessoas vivas a inaugurar estátuas a elas próprias”, sublinha, embora isso não lhe suscite a vontade de ir “lá derrubá-las”. Propõe, neste contexto, que se “solicite a autarquias e governos que mudem o pouso de alguns “mamarrachos” (há museus, há depósitos). Poderá haver várias razões para essas mudanças do “mobiliário humano”, mas não me parece que a tentativa de reescrita da história seja a melhor razão”, realça.
Para o historiador Rui Bebiano, importa atender a vários fatores e razões, porquanto não se pode olhar e entender todos casos da mesma maneira, como, por exemplo, os que se inserem na simbologia do “racismo, do esclavagismo e até de louvor à Guerra Colonial” e os que têm a marca do Império Colonial. Não lhe parece, todavia, que a eventual retirada de estátuas dos espaços urbanos possa ser feita sem desencadear uma espiral de destruição e vandalismo. Neste contexto, defende “uma eventual retirada de estátuas para o seu contexto — e nunca em termos de destruição, mas de colocação em museus ou parques temáticos, com o devido enquadramento histórico, como se fez, por exemplo, no leste europeu ou nas antigas colónias — e nunca para uma campanha sistemática”.
Recorda, a este respeito, a decapitação, em fevereiro de 1975, da estátua de Salazar erguida em Santa Comba Dão, que “marcou entre nós o desejo de um corte com o passado, mas resultou do contexto revolucionário. Já uma alteração pontual no presente, a revelar-se necessária, deverá ser resultado de um debate público enquadrado no plano parlamentar ou autárquico, nunca do voluntarismo de um grupo ou setor”, propõe o historiador.
A visão do sociólogo Miguel Cardina aproxima-se muito daquilo que é defendido por Rui Bebiano. Em todo o caso, não deixa de estabelecer algumas diferenças, designadamente quando olha para a diversidade dos casos objeto de críticas e acusações: “importa ter em conta que as estátuas que estão a ser alvo de contestação são uma parte pequena das estátuas existentes no espaço público, em geral relacionadas com figuras ligadas à violência colonial ou à escravatura (caso de Colstson). E há muitas práticas possíveis para lidar com isso, que podem passar pela destruição mas também pela ressignificação ou pela deslocação para um lugar onde possam ter um enquadramento explicativo de outra natureza”, sustenta Miguel Cardina.
Tudo o que o físico Carlos Fiolhais ou as visões avançadas por figuras ligadas à História e à Sociologia defendem, já conhecem experiências muito concretas. Em Taiwan, mais de 200 estátuas de Chiang Kai-shek foram removidas, entre 2000 e 2008, dos vários locais onde se encontravam por todo o país, e realojadas num imenso jardim situado junto ao mausoléu do antigo líder, na cidade de Taoyuan no nordeste de Taiwan. Mas muitas centenas de estátuas dele existem ainda pelo país, como a gigantesca imagem em bronze, onde Chiang aparece sentado, que está no centro da capital Taipé e ainda hoje é alvo de honras militares. Tal não significa que o problema esteja inteiramente resolvido e pacificado. Na verdade, o debate continua aceso entre os que querem a remoção completa das estátuas e os que procuram não levantar pó a uma velha questão em que Chiang Kai-Shek representa a ideia de Taiwan ser território da RPC. Chiang morreu em 1975 e, a partir da década de 80, quando o país iniciou o seu percurso rumo à democracia e, em especial a partir da década de 1990, aumentaram as vozes que defendem a remoção das imagens do antigo líder das ruas e praças do país.
A História, aliás, regista inúmeras situações, normalmente na sequência de mudanças de regime, em que as marcas urbanas são alvo de profundas transformações. Pegando em meia dúzia de casos bem conhecidos, Rui Bebiano aviva-nos a memória, trazendo à colação as ações dos “bolcheviques que rapidamente destruíram os monumentos erguidos aos czares e aos generais do regime caído em 1917”. Mas não só. “O fim do Terceiro Reich impôs também a destruição da enorme panóplia simbólica monumental do nazismo, e um dos primeiros gestos da Revolução Húngara de 1956 foi demolir a enorme estátua de Estaline erguida junto ao Parque Városliget, em Budapeste. Na Itália libertada do fascismo — acrescenta — nos Estados que emergiram do fim dos impérios europeus em África, ou após a queda do Muro de Berlim, tornou-se rapidamente comum, para além das profundas alterações na toponímia das cidades e na designação dos espaços, a retirada para lugares reservados ou a destruição dos conjuntos escultóricos que recordavam os regimes derrubados e os seus construtores. O derrube de estátuas é, pois, trans-histórico, diria que em determinados momentos «inevitável», ainda que o não considere um gesto necessariamente louvável e menos ainda algo que possa fazer-se de forma indiscriminada.
“Em Portugal — sustenta João Paulo A. Nunes — a presença no espaço público de múltiplas estátuas poderia ser debatida. Esse debate deveria visar, antes de mais, a análise dos significados, do contexto de produção e das reinterpretações de cada um desses monumentos. Só em casos extremos se deveria optar pela transferência de estátuas para reservas museológicas”. E aponta, “a título de possibilidade, o caso do Monumento aos Heróis do Ultramar, em Coimbra”.
Um dos argumentos e dos riscos que frequentemente é esgrimido é o da reescrita da História. Nada de especialmente grave ou novo, dir-se-á. “Em certa medida — lembra Rui Bebiano — toda a História está aberta à revisão e à reescrita. Esse é, aliás, a tarefa dos historiadores — olhar de novo o passado, reinterpretá-lo à luz do conhecimento e das perguntas de hoje — e também da sociedade em geral”. Daí, que o lhe parece “equivocada é a ideia que se ‹‹está a apagar a História››. Em geral, os monumentos, as estátuas, são celebrações no presente — do presente em que elas foram feitas e do presente onde elas continuam a atuar simbolicamente como representações operativas de um passado que se quer celebrar e usar como instância de legitimação”, sustenta o historiador.
Neste contexto, considera que “a estátua de Padre António Vieira, por exemplo, independentemente do que se possa pensar da sua ação histórica, diz-nos mais sobre o tipo de representações sobre o passado colonial existente em Portugal, em 2017, quando foi erguida, do que sobre Vieira enquanto personalidade histórica”. Isto porque, em seu entender, tais “movimentos de questionamento de estátuas e monumentos são também, eles próprios, parte da história a acontecer. Movimentos que questionam as narrativas existentes sobre o passado. Serão assim vistos no futuro. Nessa medida — acrescenta — não se trata tanto de submete-los ao ‹‹julgamento da verdade›› — como se a História se pudesse definir de uma vez por todas, e não fosse ela própria sujeita às perguntas e inquietações do presente — embora se possa questionar e tentar perceber que tipo de representações do passado e das figuras contestadas estão em causa”.
Sobre uma eventual radicalização que tais movimentos ou acontecimentos possam promover, Guilherme Figueiredo é taxativo: “é comum chamar-se radical àquele com o qual se discorda e que se visa descredibilizar”. Como tal, acreditar que isto poderá “radicalizar” as pessoas é ser-se negligente face às “motivações por detrás destes acontecimentos históricos que vivemos e que devem ser o foco das nossas atenções: as profundas desigualdades sociais e económicas que afetam negativamente uma fração muito significativa da população mundial”, sublinha o antropólogo.
O ator e ativista Paulo Pascoal duvida, no entanto, que o termo “radicalização” seja bem empregue no quadro em que por norma é utilizado. Porém, não deixa de lançar igualmente algumas achas críticas sobre a versão dominante que se conta da História, sobretudo ao nível da sua dimensão “euro-centrada”. Nesse sentido, defende a necessidade de se proceder a “uma reparação histórica que humanize os seres afro-descentes. É sobre a humanização dos povos africanos, indígenas e não brancos, que estamos a falar. Glorificar quem fez parte do mal no passado retira diretamente de quem tenta fazer o bem no presente, e isso comprometera sempre o nosso futuro”, realça Paulo Pascoal.
Testemunho de André Cardoso
André Cardoso, rapper e ativista moçambicano é mais veemente: “estas estátuas visam, por um lado, vangloriar um processo colonialista, e por outro visam colocar eternamente o africano colonizado como um ser subalterno. É um processo bom — retirar as estátuas — porque visa desconstruir esta visão que se quer eternizar: o africano como ser atrasado e subalterno e que só com a ação civilizatória do europeu pode alcançar o chamado desenvolvimento. É, pois um processo normal, que peca por tardio”.
É à luz deste raciocínio que propõe que se olhe “para o colonialismo como algo maléfico que ocorreu. Sim, houve colonialismo, mas foi um equívoco”, insiste André Cardoso, para quem os países colonizadores “devem um pedido de desculpas aos povos colonizados. As marcas e as feridas ainda pairam sobre o nosso povo. Logo, há que olhar para esse passado, como ‹‹algo de horripilante››, ou seja, evitando heroicizar quem o fez”, defende o rapper e ativista moçambicano.
Confrontado acerca de que estátua ou monumento, em Moçambique, o incomoda ver no espaço urbano, o historiador Euclides Munhisse destaca “a que se encontra na praça [n.r.: antiga Praça Mac-Mahon e atual Praça dos Trabalhadores] em frente à estação dos caminhos de Ferro, na baixa de Maputo”. A estátua evoca a II Guerra. Para o historiador, tal não faz sentido manter, uma vez o monumento “dizer muito pouco sobre nós em relação a essa Guerra; daí, eu entender que faria muito mais sentido colocar no local a imagem de uma figura relevante da história de Moçambique ou de África”.
Embora aceite que os “monumentos fazem parte da nossa memória coletiva, seja ela do colono europeu ou asiático”, Euclides Munhisse entende que “não precisamos de enaltecer as memórias do colonialismo/escravatura, apenas precisamos de aceitá-las — até porque a História não se constrói apenas de boas obras, se não estaríamos a voltar à história palaciana”.
Sobre a atual discussão em torno da reescrita da História, o mesmo historiador considera que “é um desafio mundial e que nem devíamos remeter-nos a esta reflexão apenas pelo advento do ‹‹Black Lives Matter››, mas sim, porque a história dos séculos XIX e XX engrandece os vencedores; portanto, este momento pode ser tido não só como de reflexão, mas também como um marco para a reescrita da nossa História — não me refiro à história Oficial, refiro-me à História viva”, sustenta Euclides Munhisse. André Cardoso, por seu lado, recorda algo que fere a alma e a dignidade do africano:
“Nunca fui a Portugal, mas sei que existe lá um parque, chamado Portugal dos Pequenitos, que representa homens e mulheres negras, e tem máscaras africanas e estátuas, com o intuito de representar mal o africano. Lábios pintados a vermelho, por exemplo. Isso choca-me. Veja as máscaras e as frutas tropicais com macacos, representando uma visão de África como selva. Ora, este tipo de representação de África como selva perpetua a ideia do processo colonial. No século XXI este tipo de imagens e ideias parecem-me horripilantes”, critica o rapper e ativista moçambicano.
Contactada pelo sinalAberto, a administração da Fundação Bissaya Barreto, proprietária do Portugal dos Pequenitos, através do seu Serviço de Imagem e Comunicação rejeita o sentido das palavras de André Cardoso, argumentando que “não tem uma visão colonialista portuguesa sobre os países africanos”. E acrescenta que “tem em curso um projeto dinâmico, de atualização dos conteúdos do Portugal dos Pequenitos”, projeto esse, sublinha, que “possibilitará não só o encontro com novas visões e representações simbólicas do Portugal contemporâneo, como uma leitura atualizada sobre os espaços e símbolos existentes”.
Neste quadro de contextualização e de ressignificação história, Paulo Gama da Mota afirma “nada ter contra a releitura da história, que está sempre em curso. Somente, contra os julgamentos da história, porque as formas de revisionismo histórico procedem a um julgamento dos atos do passado com base em valores do nosso tempo. Isso é uma forma de anacronismo que é logicamente insustentável”. Para o biólogo “essa revisão para sempre num determinado ponto, como se a memória terminasse num ponto e orientação, e não houvesse mais nada a considerar. Ora, todos os povos têm esqueletos nos seus armários. Todos. Quando Colombo chegou à América — sublinha — os Aztecas tinham uma cultura violenta de sacrifícios diários, tendo mesmo erigido um gigantesco monumento com os crânios das vítimas dos sacrifícios, algo que horrorizaria qualquer europeu do seu tempo. Uma das mais perniciosas mitificações do nosso tempo, persistente em muitos departamentos das ciências sociais e humanas, é o mito Rousseauniano do ‹‹bom selvagem››. Uma construção falsa e completamente errada, sabemos hoje, com abundante evidência, sustenta Paulo Gama da Mota.
Carlos Fiolhais acrescenta outros argumentos: “em democracia não há razões para revoluções e guerras: podemos usar a palavra e o voto. Vimos os radicais islâmicos destruir objetos arqueológicos, num crime contra a humanidade, porque a humanidade é a história, com tudo o que hoje julgamos bom e com tudo o que hoje julgamos mau e que amanhã será provavelmente julgado de maneira diferente. De resto, o bom e o mau serão entendidos de diferente maneira por diferentes pessoas”.
Na perspetiva do historiador Rui Bebiano “abrir a destruição, a alteração ou a deslocalização deste género de símbolos a todas as situações nas quais algo fosse questionado por alguém, redundaria no desaparecimento de inúmeras obras, para além de levantar novos problemas e acender conflitos perigosos e muitas vezes desnecessários”. Mais uma vez, portanto, a necessidade de evitar decisões ligeiras e meramente conjunturais. “A fronteira possível será sempre a da razão”, insiste o mesmo investigador e professor da Faculdade de Letras da Universidade de Coimbra.
Nesse sentido, reitera a necessidade de uma contextualização histórica, designadamente nos casos em que os monumentos celebram “abertamente a desigualdade ou ataquem expressamente direitos humanos consagrados. Em qualquer caso, tal deverá ser sempre feito pelos poderes públicos democraticamente legitimados, de uma forma pedagógica e dependente também de estudos criteriosos que identifiquem o problema e as suas vertentes”, acrescenta Rui Bebiano.
Na visão do físico Carlos Fiolhais, “o estudo da história — não é nem nunca foi um julgamento. É conhecimento. A história foi o que foi e nada podemos fazer para a alterar. Podemos aprender com ela? Sim, podemos e devemos, mas o futuro é sempre novo. Depois de nós continuará a haver história. Temos muito a tentação de nos julgarmos o centro dos tempos e, por vezes (veja-se o caso do atentado à estátua do P. António Vieira), fazemos juízos baseados na nossa ignorância. O passado tem de ser visto, pelos historiadores e por todos, à luz da época”.
Nesta perspetiva contextualizada e enquadradora, Carlos Fiolhais sustenta que, se “hoje condenamos a violência (incluindo o racismo, o colonialismo e a escravatura, que são formas de violência)”, a verdade é que só muito recentemente “adquirimos a noção de direitos do homem” e “assumimos nas leis a igualdade humana”. Contudo, sublinha que se o mundo continua violento, já o foi muito mais. “Houve tempos em que não havia direitos nem igualdade à face da lei. Apagar o passado é apagarmo-nos a nós próprios. Faz algum sentido destruir, por exemplo, Conímbriga só porque os Romanos eram colonizadores (colonizaram-nos!) e tinham escravos (a quem maltratavam)? Vamos deixar de usar uma língua que veio do latim, a língua do colonizador? Haja juízo”.
A discussão está, pois, em aberto; e se agora ela foi alvo de uma aceleração histórica, digamos assim, sem o rigor que a expressão merece, ela não é particularmente nova. Simplesmente — e aqui reside a novidade — ela conseguiu pela primeira vez uma presença e protagonismo mediático sem precedentes. O historiador francês Marc Ferro na sua obra “Falsificações da história”, publicada pela primeira vez em 1981, já antecipava muitas das questões que agora se discutem. Partindo da ideia de que “controlar o passado ajuda a dominar o presente, a legitimar ascendentes e contestações”, ele chamava a atenção para o facto de que são os “Estados, igrejas, partidos políticos ou interesses privados, que possuem e financiam os mass media ou aparelhos de reprodução, livros escolares ou bandas desenhadas, filmes ou emissões de televisão”. Donde, conclui Marc Ferro, “a revolta surge daqueles cuja história está ‹‹interdita››”.
Mais uma razão, portanto, para procurarmos perceber como os manuais escolares e, em particular, como o ensino da História recente — e da colonização — de Portugal é dada. Pergunta-se: há ainda uma glorificação do passado, como sucedia no Estado Novo, ou, pelo contrário, existe uma leitura crítica dos acontecimentos, ou seja, da História, mesmo, como é o caso, ela é escrita e corresponde, por isso, à versão do antigo país e império colonizador?
Mais uma razão, portanto, para procurarmos perceber como os manuais escolares e, em particular, como o ensino da História recente — e da colonização — de Portugal é dada. Pergunta-se: há ainda uma glorificação do passado, como sucedia no Estado Novo, ou, pelo contrário, existe uma leitura crítica dos acontecimentos, ou seja, da História, mesmo, como é o caso, ela é escrita e corresponde, por isso, à versão do antigo país e império colonizador?
A palavra aos professores do secundário
O passado colonial português faz ou não parte dos programas do ensino secundário? E que perspetivas dão os manuais sobre esse período, se é que falam dele? Tendo como ponto de partida estas duas questões fomos ao encontro de professores de História, para recolher o seu olhar e perspetivas sobre uma questão que está longe de reunir consensos.
Francisco Silva, professor do 12º ano na Escola Básica Secundária Ferreira de Castro, em Oliveira de Azeméis, garante que os manuais, sobretudo no ensino Secundário, abordam a Guerra Colonial: “em todos os três anos se discute a questão da colonização, as atitudes racistas e a escravatura. Há uma preocupação por parte dos autores dos manuais de evitar aquela glorificação, que acontecia sobretudo durante o tempo do Estado Novo”.
Paula Amorim, professora nos 10º, 11º e 12º anos na Escola Secundária João da Silva Correia, em S. João da Madeira, é menos otimista. Em seu entender, “a abordagem é linear”, o que faz dizer que lhe “dói abordar de forma genérica o tema da Guerra Colonial. Chegamos a essa matéria — especifica — na reta final do 3º período”, altura em que ainda tenta fazer uma ponte com o 25 abril. Porém, lamenta correr “o risco de não chegar a esse tema, dada a redução da carga letiva da disciplina”.
E os alunos que não são de Humanidades? A professora tem resposta para o problema:
Testemunho da professora Paula Amorim
Para Paulo Pacheco, professor do 10º ano na Escola Básica Secundária Soares Basto, em Oliveira de Azeméis, é fundamental não apenas incentivar o sentido crítico dos estudantes, como desmistificar aspetos que não tem razão heroicizar ou mistificar. Do seu ponto de vista, “foi à custa do esclavagismo que se conseguiu, por exemplo, colonizar. Nada disto deve branquear a verdadeira aceção da palavra. E porque é que muitas vezes não é esclarecido?”, pergunta o professor, para quem “por mais vergonha que se tenha de um passado, nunca se deve apagar”.
Francisco Silva é mais contundente nas palavras. “Hoje — argumenta o professor trazendo o debate para os grandes problemas contemporâneos — temos escravatura disfarçada, em Portugal. Porque surgiram os surtos do COVID no Bombarral e na plataforma logística? Ninguém se preocupa com os paquistaneses, os indianos, com os que vieram do Bangladesh… Quem são eles? Temos muito tráfico de humanos, mas é mais mediático falar disto, e de facto reconheço que nos EUA existe um problema sério”.
Mais uma razão para conferir protagonismo ao ensino da História, sem esquecer de a discutir ao longo de tempo e de nela incluir os chamados momentos dolorosos que o país viveu.
Testemunho do professor Francisco Silva
Testemunho do professor Paulo Pacheco
É também pela atitude crítica que Francisco Silvaconstrói a sua argumentação. Embora não esconda as dificuldades que o processo de ensino apresenta, tanto para alunos, como para professores. “Desde que leciono sempre se abordou, talvez não com toda a importância devida, estes problemas”, sublinha o professor.
Paula Amorim não se afasta muito dessa perspetiva. Porém, chama a especial atenção para um detalhe a seu ver essencial: “temos de perceber e estudar segundo a mentalidade da época. Há razões muito válidas para uma raiva acumulada, o racismo é um problema da atualidade. O ensino da História pode ser promotor de uma crescente tolerância e compreensão, desencorajando manifestações de violência e vandalismo, pois a História não pode ser refeita e o maior erro é tentar apagar a História”.
Eis o que tentamos aqui evitar ao trazer a debate um tema que tem marcado a atualidade de muitos países, nestes tempos ainda abalados pelos efeitos da Covid-19.